sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Contraponto 12.953 - "A barragem humana de 2002 e o desafio de 2014"

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20/12/2013
 

A barragem humana de 2002 e o desafio de 2014

 

Carta Maior - 20/12/2013 

 

Se a Presidenta Dilma não pode assumir uma campanha equivalente pela circunstância de candidata e Chefe da Nação, que seja Lula a fazê-lo.



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por: Saul Leblon 
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A histórica campanha de 2002, que conduziria um homem do povo à Presidência da República no Brasil, reuniu uma convergência de fatores exaustivamente dissecados  na análise política dos últimos anos.

A ideia de uma sociedade flutuante, organizada pelo livre fluxo dos capitais e entregue à inconstância dos mercados globais, encontraria ali seu laboratório de  contestação sobressaltado.

Na curva ascendente do dólar emergia o símbolo de uma inviabilidade que se tentava desesperadamente atribuir ao ‘risco Lula’.

Engessado em seus próprios termos, o governo adernava, descolando-se das referências  cotidianas da população.

Nesse carrossel de incerteza  e  desemprego, a sociedade brasileira  via se confirmar dentro e fora do país  uma saturação de modelo nunca cogitada  no discurso oficial edulcorado sobre o Consenso de Washington.

O conjunto deixava à candidatura do PSDB uma única linha de campanha: o terror.

Lembra um pouco os dias que correm, nesse aspecto.

Diante de um imaginário diuturnamente  assombrado pelo aparato conservador, o marketing da campanha petista desempenharia um papel relevante.

Vacinas de esperança contra a difusão do medo desdobravam-se na forma de imagens e  jingles de competência reconhecida.

Quem não se lembra? ‘Lula-lá...’

Era, porém,  o arremate.

A queda de braço substantiva travava-se em outro lugar.

Com o passar do tempo, porém, forças da moderação exercitaram a conveniência de atribuir ao componente publicitário uma dimensão superior a que ele teve no confronto de 2002.

A insistência nessa desproporcionalidade contaminaria a hierarquia e o método de ação política, dentro e fora dos ciclos eleitorais.

Sem negar o peso do marketing eleitoral na democracia moderna, cumpre resgatar a proeminência  daquilo que foi relativizado na memória do partido e de seus estrategistas: a barragem humana pró-Lula que o PT mobilizou nas ruas e praças do país na memorável campanha de 12 anos atrás.

Mais que resgatar.

Trata-se de ponderar o risco de uma insistência na centralidade publicitária, a conduzir a duríssima disputa pela reeleição da Presidenta Dilma, em 2014, delegando-se ao marketing a tarefa de romper a pesada cortina de fogo que se avizinha.

Alguns apontamentos  dos idos de 2002 ajudam a recompor uma hierarquia na qual a mobilização de rua exerceu uma proeminência com a qual o PT precisa se reconciliar.

Em busca do futuro, 52,7 milhões de eleitores respiraram fundo e  rasgaram o interdito à mudança em 2002.

Analistas que a partir da desforra das urnas “descobriram” traços de messianismo no candidato e no povo brasileiro, perderam-se na epiderme.

Se levassem  em conta as aglomerações cada vez maiores a ouvir o ex-metalúrgico, talvez não tivessem cometido o tropeço de acreditar que a disputa presidencial de 2002 seria decidida no ar refrigerado dos estúdios de tevê .

Ou na guerrilha psicológica, ora denominada em dólares, ora na argentinização da economia, ora na Carta aos Brasileiros  –sinônimo para alguns de uma indiferenciação  que desmoralizaria o voto e sua capacidade de mudança.

 A rua de 2002 estava  programada para ser, quando muito, um ornato de uma campanha empalmada  pelo terrorismo econômico e as manchetes pró-PSDB.

Não foi o que ocorreu.

No movimento das multidões residia um dado da campanha inalcançável  pela análise conservadora: a mutação do eleitor passivo , mero recipiente publicitário, em protagonista do espetáculo.

A certa altura do pleito, na antessala do primeiro turno, empresários mais atentos pareciam intuir a dinâmica em gestação.

A onda anti-Lula que se tentava semear com a chantagem do caos, o desgoverno, a comunização do país colidia com barragens humanas de fôlego superior à capacidade do mercado e da mídia renovarem um  bombardeio que já ameaçava atingir seu próprio pé.

Nos bastidores, vozes da elite admitiam que seria melhor se Lula ganhasse logo no primeiro turno, para devolver as ruas aos carros e as praças aos mendigos.

O país vivia uma prontidão massiva.

À presença do candidato, ela se derramava em gigantescas manifestações de um desassombro contagioso.

Nada é mais perigoso na vida de uma elite do que isso: gente e esperança nas ruas.

O risco da ingovernabilidade avolumava-se no colo de quem o alardeava.

Quem acompanhou desde o início o périplo de comícios e carreatas feitas por Luiz Inácio Lula da Silva em todo o país, não estranhou a explosão de otimismo cívico que irromperia na avenida Paulista meses depois, no domingo da vitória,  27 de outubro de 2002.

A trajetória do improvável candidato ‘sem diploma universitário’, como espetava o mote conservador,  era a evidência da vitória possível contra a adversidade.

Não havia subida do dólar capaz de deter  a espiral de autoestima emitida dessas sinapses intuitivas.

Oficialmente, a agenda de comícios  do PT começou no dia oito de julho, em Goiânia.

Antes, houve uma caminhada no centro de São Paulo.

Morna.

Ninguém previa o formigueiro em movimento no subsolo do país.

Em pouco mais de vinte dias, porém, Lula já havia falado a mais de 100 mil pessoas em seis capitais.

A afluência a sua passagem só fazia crescia.

Na passeata que reuniu 30 mil no Recife, em primeiro de agosto, a bola de neve girou pela primeira vez.

Gritos e aplausos das calçadas;  chuva de papel picado dos edifícios de classe média.

O conjunto  sugeria  um novo patamar.

A adesão popular no trajeto de quatro quilômetros, da Conde da Boa Vista, no centro, à cidade velha, surpreendeu os organizadores.

Era um ensaio.

Dezessete dias depois: Santos.

Na principal cidade do litoral paulista, a bola de neve girou pela segunda vez.

Agora, refletida no rosto das pessoas.

Idosos de classe média baixa, carregavam netinhos pela mão.

Gente que não veste camiseta de candidato, nem empunha bandeiras, rastreava o jingle da campanha nos lábios.

Ainda sem saber a letra.

Mas já contagiada pela proposta encorajadora:

 “...é só você querer/que amanhã assim será/bote fé e diga Lula/bote fé e diga ...”

Um senhor distinto de calça e camisa branca ensaiou passos de dança ao final do comício -- lá atrás, longe da militância que normalmente ocupa o gargarejo do palanque.

Quase não havia repórteres cobrindo o evento daquela noite.

O Datafolha ainda represava Lula nos 37% das intenções de voto.

 Mas a sociedade rigidamente engessada em um duplo torniquete de terror financeiro e jornalístico; acuada em um patíbulo  no qual os credores internacionais faziam o papel da corda – e o Brasil o de pescoço-- começava a se convencer de que mudar era possível.

A peregrinação  de Luiz Inácio Lula da Silva pelo país  era a senha.

Nos palanques, a voz crispada, o suor respingado pelo rosto, não raro misturado às lágrimas, emitia a sonoplastia de uma trajetória de vida auto-explicativa, movida a coragem, teimosia e  superação.

Por que não o Brasil?

A pergunta começou a latejar na cabeça de milhões que nunca tinham votado no PT.

Em meados de outubro, a pressão da bola de neve já era tão forte que os deslocamentos do candidato transformaram-se num pesadelo para sua segurança.

Em Caruaru, PE, uma multidão quebrou os vidros de um hotel na tentativa de se aproximar dele. 

Mas os jornais não noticiavam.

As tevês omitiam as cenas de receptividade calorosa.

Muitos analistas continuavam a ecoar o presidenciável oficial, que fustigava a catarse emergente com o espectro do caos, se fosse derrotado.

O jogo pesado entre  o jornalismo conservador e o clamor da mudança estava escancarado.

O próprio presidente-sociólogo dava mostras de ter captado a natureza irrefreável do que estava em ebulição.

Mas a resignação  era insuficiente para corrigir oito anos em sentido contrário. Até porque, o alvo das cobranças  agora já não se restringia apenas ao seu governo: ela questionava uma história de longo curso à qual ele, o seu governo e o seu partido haviam aderido.   

A República brasileira sempre foi  fiel aos seus patrocinadores.

Grosso modo, disse uma vez  Antonio Candido, ela foi uma vingança regressiva das classes dominantes.

O Império lhes havia subtraído  os anéis, na tentativa de salvar a coroa, ao proclamar a Abolição, em 1888 --após 388 anos de equivalência entre trabalho e escravidão.

O repto conservador foi a República que já nascera com a nódoa elitista.

Seriam necessários mais 99 anos, desde a proclamação, em 1889, (que teve voto a descoberto, vigiado pelos coronéis, até 1930), para que o chão do país, seu elo mais fraco, os analfabetos sucessores dos escravos, conquistassem o direito de opinar sobre a dita res pública.

Só na Constituição de 1988 eles deixariam a condição de eunucos cívicos para adquirir corpo e voz  por inteiro através do voto.

Deu no que deu.

Um nordestino sem diploma universitário --como 167 milhões de patrícios; pau-de-arara, arrimo de família, torneiro-mecânico, monoglota, sem um dedo, que tinha tudo para entregar suas carências ao conformismo, invadiu a política pela porta da esquerda.

Com a espantosa cumplicidade de 61,3% do eleitorado, tornar-se-ia  em 2002 o chefe de Estado mais votado da história republicana.

E o segundo do mundo.

Perdeu para Reagan em números absolutos; o eleitorado dos EUA é maior que o brasileiro.

Qual o segredo?

A vida de Lula se confundia com a biografia média dos brasileiros em suas inúmeras intersecções com acontecimentos que marcaram o país nos últimos 500 anos.

Quando ele  discursava  era como se conversasse sobre a sua vida; e quando conversava era como se discursasse sobre a vida do país.

O dono da voz devolveu ao país a sensação de familiaridade com a coisa pública e a política. E o fez assumindo-se como a síntese histórica, de carne e osso, de força e fraquezas, potencialidades e limitações que caracterizam o povo ao qual pertence.

Nada mais distante de um messias do que um líder que reverencia, primeiro, aqueles que desbastaram o caminho para que pudesse chegar onde chegou.

Era assim que o candidato iniciava a  sua fala algumas vezes.

Foi assim também no palanque da vitória, em 27 de outubro de 2002, quando ele iniciou com uma homenagem aos mortos.

Os que tombaram pelos que estão vivos; os que dedicaram sua existência aos que viriam depois: --Sérgio Buarque de Holanda, Paulo Freire, Chico Mendes, Henfil...

Lula ouvia e incorporava nomes soprados da multidão.

Dividia as honras com o passado para compartilhar as responsabilidades pelo futuro.

“Até aqui fizemos o mais fácil”, advertiu então, para convocar em seguida: “o difícil começa agora”.

 Ao não se dissociar da rua, reafirmava-se  como a expressão de um impulso histórico.

“Aconteça o que acontecer”, reiterou à multidão emocionada que foi ouvi-lo na Avenida Paulista, quase à meia-noite, depois do segundo turno:

“Vocês serão sempre a referência, sem vocês eu não seria o que sou, eu não chegaria onde cheguei”.

Trata-se de uma nova versão daquilo que repetiu tantas vezes nos palanques do Brasil:: ‘eu sou um produto das lutas sociais do povo brasileiro’.

A voz calejada reverbera não a vontade pessoal, mas a polifonia que liga os que já morreram aos excluídos de hoje e aos intelectuais comprometidos com o amanhã.

Esse foi o principal recado da histórica disputa que sacudiria o Brasil há mais de uma década.

Um recado de atualidade inoxidável.

As mudanças de que a sociedade brasileira necessita exigem, mais que nunca, a participação dos seus interessados  para serem efetivadas.

Exigem a mesma barragem humana que ocupou as ruas contra a captura da democracia pelo dólar e pelo terror midiático, em 2002.

Sem esse impulso, o candidato metalúrgico não venceria.

O presidente-eleito sucumbiria ao cerco do terceiro turno desencadeado logo após a sua posse.

Não sobreviveria ao impeachment abortado pelo medo dos protestos, em 2005.

Não seria reeleito em 2006.

Tampouco faria a sucessora em 2010.

As pesquisas de intenção de voto indicam que há fortes chances de se adicionar um novo mandato  --da Presidenta Dilma--  ao ciclo que já se estende por 12 anos.

Sem um aggiornamento do que se viu em 2002, sem a força e o consentimento acumulados nas mobilizações de então, será impossível revalidar o pacto mudancista que sacudiu a política brasileira. 

Mas, sobretudo, será impossível ir além dele, para dar cabo dos novos  gargalos que desafiam o desenvolvimento a democracia brasileira.

Se a Presidenta Dilma não pode assumir uma campanha com essas características de combate por conta  de sua dupla circunstância, de candidata e Chefe da Nação,  que seja Lula a fazê-lo de novo.

E que o PT saiba dar a isso a centralidade da qual hoje se ressente diante do cerco conservador que jogará sua cartada de vida ou morte em 2014.

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