10/02/2014
As mentiras de Ramona
Do Direto da Redação - 09/02/2014
Mário Augusto Jakobskind
A oposição sem bandeira está a agradecer penhoradamente à médica
cubana Ramona Matos Rodrigues por ter abandonado o programa Mais Médicos
e acusar o governo de receber salário reduzido.
A mídia de mercado está deitando e rolando, mas, como sempre,
apresentando a versão de um dos lados, exatamente a que está sendo
aproveitada pela oposição sem bandeira.
Não foi informado em nenhum momento a existência no Departamento de Estado norte-americano de um programa com a denominação de Cuban Medical Profesional Parole,
que tem por objetivo buscar a deserção de cubanos médicos e do pessoal
de enfermagem atuando em várias partes do mundo. Para se ter uma ideia,
segundo informação do governo cubano, nos últimos quatro anos cerca de
83 mil médicos e enfermeiros prestaram ou estão prestando serviços
médicos no exterior. E deste total, 1,89%, ou seja 1574 foram cooptados
pelo organismo do Departamento de Estado em 65 países.
Trata-se, na verdade, de uma batalha ideológica desencadeada pelo governo dos Estados Unidos contra o regime da ilha caribenha.
O episódio da médica Ramona parece ser mais um da série em que são
ofertados mundos e fundos ao pessoal médico. Tudo indica que Ramona caiu
no canto da sereia e além do esquema norte-americano conta com a ajuda
de parlamentares oposicionistas e da direita brasileira.
É curioso o fato do protetor de Ramona, o deputado ruralista Ronaldo
Caiado, um crítico veemente da “escravidão médica” de Cuba ser no Brasil
opositor radical ao Projeto de Emenda Constitucional (PEC) do trabalho
escravo, apresentado exatamente para acabar com essa excrescência ainda
existente no país em pleno Terceiro Milênio. .
Destino final
O caso da médica cubana é sintomático. Tão logo ela chegou em
Brasília a primeira coisa que fez foi tentar conseguir na Embaixada dos
Estados Unidos pedido de asilo para entrar no país distante 200 milhas
de Cuba e que a propaganda diz para os cubanos ser um “paraíso”. É
interessante acompanhar qual será mesmo o destino final da doutora
Ramona.
O governo estadunidense - e de quebra a direita brasileira a ele
vinculado - está apoplético com vários acontecimentos das últimas
semanas envolvendo Cuba.
Primeiro enfurecimento: a reunião realizada em Havana da CELAC
(Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos), que contou com a
presença de 30 chefes de Estados da região, além de outros
representantes, e que Estados Unidos e Canadá não participam.
Como se não bastasse, a inauguração de parte do Porto de Mariel, que
na prática amenizará alguns efeitos do bloqueio norte-americano a Cuba
enfureceu ainda mais Washington. E por aqui, a direita brasileira, para
variar, seguiu os mesmos passos de fúria do governo norte-americano ao
afirmar a todo momento que o governo de Dilma Rousseff está financiando
“a ditadura dos irmãos Castro”. Esse é o termo empregado pela mídia de
mercado de um modo geral ao se referir a Cuba.
Foi praticamente omitido do noticiário que o empréstimo do BNDES para
a obra em Mariel será ressarcido e possibilita mais de 150 mil empregos
para os brasileiros.
Diferenças de contrato
A mida de mercado destas bandas comprou a versão de Ramona de que não
está ganhando integralmente os 10 mil reais como os demais médicos, o
que para a direita caracteriza-se como “trabalho escravo”.
O argumento não resiste a menor análise. Os mais de seis mil médicos
cubanos que participam do programa Mais Médicos não vieram para o Brasil
forçados e aceitaram o contrato oferecido com a intermediação
da Organização Pan-americana de Saúde.
Aceitaram o salário de 900 dólares a receber no Brasil e a outra
parte através do depósito de 600 dólares mensais em uma conta bancária
em Cuba. Com isso, no fim de três anos de contrato, o pessoal cubano
terá a seu dispor 21.600 dólares ou moeda local correspondente.
É necessário assinalar as diferenças entre o médico que vem ao Brasil
individualmente e o que vem com a intermediação do Estado, no caso
cubano, que investiu na formação do profissional. Aliás, o Estado
brasileiro, deveria cobrar do formando em medicina em escolas públicas a
prestação de serviços médicos pelo que nele foi investido, por exemplo,
no interior do país, pelo SUS (Sistema Único de Saúde). Se isso fosse
feito, provavelmente os brasileiros nesses rincões não estariam tão
carentes de médicos. É possível até que o Brasil não necessitasse, tanto
como agora, da presença de médicos de outros países para suprir a
carência.
Se o Estado investe nas escolas públicas para a formação dos médicos
tem todo o direito de fazer alguma cobrança. Houve até um momento, no
ano passado, de tentativas no sentido de se exigir que os médicos
formados em universidade públicas prestassem serviços de dois anos no
SUS. A grita classista foi geral e irrestrita. Os médicos formados nas
universidades públicas e a mídia de mercado esqueceram de lembrar que as
referidas universidades são mantidas com os impostos dos cidadãos
brasileiros.
A formação do médico não é apenas um mérito individual, mas também, e
sobretudo, devido ao esforço coletivo do povo brasileiro que paga
impostos e de onde também sai a grana para as universidades públicas.
O mesmo raciocínio é válido para brasileiros que estudam nas mesmas
universidades públicas e vão se especializar no exterior com bolsas
fornecidas pelo Estado brasileiro e acabam ficando fora do país, em
algum centro mundial de referência, onde é rotina a cooptação de
cérebros.
Em outras palavras: mais uma vez o cidadão contribuinte paga e não
leva, já que é visto com muita naturalidade nenhum retorno para a
sociedade brasileira.
Esse ressarcimento ao Estado independe da vigência no país de um regime regime econômico socialista ou capitalista.
Mário Augusto Jakobskind é correspondente no Brasil do semanário uruguaio Brecha. Foi colaborador do Pasquim, repórter da Folha de São Paulo e editor internacional da Tribuna da Imprensa. Integra o Conselho Editorial do seminário Brasil de Fato. É autor, entre outros livros, de América que não está na mídia, Dossiê Tim Lopes - Fantástico/IBOPE
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