08/11/2009
A Esquerda depois do Muro
Carta Maior - Emir Sader* 07/11/2009
A queda do Muro de Berlim marca o fim do período aberto com a Revolução Soviética de 1917 que – para dizê-lo em palavras de Georgy Lukacs – colocou o socialismo como um tema da “atualidade histórica”. As lutas revolucionárias, mesmo na atrasada periferia capitalista, passaram a ter o socialismo como objetivo. A passagem do capitalismo à sua fase superior, o imperialismo - segundo a clássica analise de Lenin, confirmada pelas duas guerras mundiais, ambas interimperialistas – constituía uma cadeia mundial que articulava a todas as sociedades existentes. A Revolução Soviética era explicável nessa lógica e se via como possivel “saltar etapas”, construir uma revolução anticapitalista dirigida pelo proletariado.
“Revolução socialista ou caricatura de revolução”, disse décadas depois o Che, sintetizando o significado da atualidade da revolução socialista. Os grandes debates da esquerda se davam então em torno das estratégias diretamente socialistas ou etapistas, reformistas ou revolucionárias, parlamentares ou insurrecionalistas, mas sempre na direção do socialismo. O tema do poder e da profundidade que deveriam ter as transformações uma vez alcançado esse objetivo, estavam também no centro dessa discussão.
O proceso chileno do comeco dos anos 70 é um claro exemplo desses debates e dilemas. Discutiam-se as vias de construção do socialismo, mas não o objetivo em si, o socialismo – mesmo Allende tendo sido eleito com um terço dos votos e a Unidade Popular ter conseguido aumentar para um máximo de 43% dos votos seu apoio. Ainda assim Allende começou a colocar em prática um programa que pretendia expropriar as 150 maiores corporações instaladas no Chile. Mas como destruir o capitalismo e constuir o socialismo, sem contar com o apoio da grande maioria do país? A esse dilema teve que se enfrentar a esquerda chilena, sem nunca questionar se as condições para a implantação imediata do socialismo estavam dadas.
1989 e suas consequências imediatas – o fim do campo socialista, da URSS e da bipolaridade mundial – fizeram com que o mundo ingressasse em um novo periodo histórico. Terminou a etapa da bipolaridade e o socialismo desapareceu da agenda mundial como “atualidade histórica”. A isto se somou a adesao da China a uma economia de mercado e a virada de Cuba para uma situação de defensiva, durante seu “período especial” e, no campo da esquerda, ter como objetivo central a luta antineoliberal.
Esse novo período se caracterizou tambem pela passagem de um ciclo longo expansivo do capitalismo – que Hobsbawn caracterizou como “a era de ouro capitalismo”, do segundo pós guerra à crise de 1973 – a um ciclo longo recessivo e por passar da hegemonía de um modelo regulador (ou keynesiano ou de bem-estar social) a um modelo desregulador, neoliberal. A combinação dessas três viradas – todas de carater regressivo – fizeram com que a esquerda passasse de um protagonismo esencial a uma situação de defensiva e de perda de iniciativa.
Sua nova cara apareceu com o Fórum Social Mundial, que levantou um lema minimalista, já não mais anticapitalista e socialista, mas simplesmente “Um outro mundo é possível”. Não se menciona que mundo será esse, ainda que se possa deduzir que seja antineoliberal, mas não necesariamente anticapitalista. Nesses lemas a referência ao capitalismo desaparece, mesmo se se faz referência direta à mercantilização – “O essencial não tem preço” -, característica essencial das análises de Marx.
Com o muro caiu tambem uma determinada maneira de interpretar o mundo. Na era bipolar havia duas interpretacoes em disputa: uma considerava que a contradiçãao fundamental no mundo contemporâneo era entre capitalismo e socialismo; a outra acreditava que era entre democracia e totalitarismo. Com a vitória do bloco occidental triunfou tambem sua versão do mundo e a democracia liberal passou a ser sinônimo de democracia, enquanto a economia capitalista se tornou equivalente a economia.
O tamanho da derrota e dos retrocessos para a esquerda foram enormes e, ao mesmo tempo, difíceis de medir concretamente. Basta dizer que a chamada “globalização” se erigiu em alguns dos seus aspectos fundamentais sobre esses reveses. A incorporação ao mercado mundial de territórios que estavam parcial ou totalmente subtraídos dessa órbita, como a China, os países do leste europeu e a Rússia.
As empresas estatais foram maciçamente transferidas para o mercado mediante extensos e acelerados processos de privatização. Recursos naturais como a água foram mercantilizados e passaram a mãos privadas. Os direitos à saúde e à educação foram transformados em bens negociáveis no mercado. Os Estados planificadores foram reduzidos ao Estado mínimo. A abertura dos mercados debilitou as soberanias nacionais. A maior parte dos trabalhadores deixou de ter a segurança dos contratos de trabalho.
Vítimas privilegiadas deste novo período foram a classe trabalhadora e o movimento sindical; o socialismo e as forças de esquerda; o Estado, os partidos e a política; a planificação econômica e as soluções coletivas. O individualismo possessivo, o mercado, o egoísmo, o consumismo, os shopping centers, as grandes marcas, as empresas como símbolo do dinamismo econômico, entre outros valores, passaram a constituir o novo modelo econômico. O neoliberalismo tornou-se dominante não apenas como política de governo, mas como modelo hegemônico, como valores, como forma de vida.
Nesse marco, o que caracteriza a esquerda do século XXI, aquela posterior à queda do Muro? Antes de tudo, ser antineoliberal. O neoliberalismo representa a forma mais desenvolvida do capitalismo, porque promove a seu nível mais alto a mercantilização, a transformação de tudo em mercadoria, a conversão do mundo em um lugar em que tudo tem preço, tudo se vende, tudo se compra. É o modelo hegemônico que articula todo o sistema econômico, político e ideológico do poder mundial. Mas o que significa ser antineoliberal?
Não somente opor-se e resistir às políticas neoliberais, mas desmercantilizar, afirmar direitos contra a competição do mercado, construir a esfera pública contra a esfera mercantil. Na América Latina é onde a nova esquerda pós-Muro de Berlim mais se desenvolveu. É aqui onde o neoliberalismo nasceu. Aqui os governos dessa tendência mais se multiplicaram e da forma mais radical. Nossa região reagiu frente às graves consequências dessas políticas, elegendo, desde 1998, o maior número de governos progresistas da nossa história. Governos que têm diferenças em suas políticas, mas todos se caracterizam por dois elementos essenciais: todos eles privilegiam os processos de integração regional contra os Tratados de Livre Comércio com os EUA e o privilégio que dão às políticas sociais em contraposição ao privilégio dos ajustes fiscais do neoliberalismo.
Esta nova esquerda, nascida da resistência ao neoliberalismo, tem assim diferenças no seu interior: por um lado estão os governos mais moderados, como os do Brasil, da Argentina, do Uruguai, do Paraguai, de El Salvador, da Nicarágua; e os mais radicais, como os da Venezuela, da Bolívia, do Equador, de Cuba. Mas todos se colocam como objetivo a superação do neoliberalismo, alguns para construir modelos pós neoliberais, outros para avançar na direcao do anticapitalismo e do socialismo. Trata-se de uma esquerda que se deu conta de que não basta resistir, denunciar e protestar – tarefas indispensáveis de quem se opõem a um mundo dominado pelo poder das armas, do dinheiro e do monopólio da palavra -, mas que também é preciso construir o “outro mundo possível”, como alternativa concreta, para o que é preciso disputar hegemonia, inovar projetos e vias, se lançar a criar a esquerda do século XXI, para que os reveses tenham sido tropeços e não quedas, e as lições sirvam para avançar em lugar de seguir chorando sobre o Muro caído.
*Emir Sader, sociólogo e cientista político.
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