18/11/2010
Amnésia midiática: como o Tigre Celta virou um Haiti financeiro
Do Vermelho - 18 de Novembro de 2010 - 17h33
Nos anos 80 e 90, a palavra “Irlanda” era pronunciada com a reverência reservada aos quitutes finos nos banquetes neoliberais. O “ajuste irlandês”, iguaria produzida a partir de uma receita de cortes brutais nos gastos públicos, demissão em massa de funcionalismo e isenções maciças de impostos, era vendido nas praças de alimentação do mundo pobre como o cardápio da hora.
Por Saul Leblon, na Carta Maior
A Irlanda era por assim dizer a garota do quarteirão do Consenso de Washington. Ombrear-se a ela era possível, mas exigiria uma aplicação de ferro, explicavam os ventríloquos nativos que agora demonstram súbita amnésia em relação ao passado desta que é a bola da vez da derrocada europeia. Recapitulemos então:
1) em meados dos anos 80, a Irlanda adotou um “padrão perene” de ajuste fiscal, cercado de “salvas & vivas” da ortodoxia mundial;
2) um serviço à la carte foi providenciado na cozinha irlandesa para atender àa freguesia do mercado: a anistia tributária veio junto com cortes de despesas e redução dos investimentos públicos em 1987;
3) 14 mil funcionários públicos foram demitidos ou aderiram a programas de demissão voluntária (isso numa população de 4 milhões de pessoas);
4) o ajuste iniciado em 87 veio para ficar. Até meados dos anos 2000, a Irlanda manteve-se fiel à santíssima trindade neoliberal: controle dos gastos públicos, teto no reajuste dos salários públicos [taxa máxima de 2,5% ao ano entre 1988 e 1990] e incentivos “amigáveis” aos mercados [leia-se, desonerações e vale-tudo];
5) o arrocho fiscal produziu, naturalmente, uma redução substantiva da dívida interna derrubando a despesa com juros de modo a obter um permanente superávit nominal [outro mantra dos neoliberais];
6) a supremacia dos mercados desregulados cavava, porém, vertedouros subterrâneos que corroíam as bases econômicas do país. O foguetório de superfície permanecia: o “Tigre Celta” crescia a taxas chinesas com macroeconomia de paraíso fiscal [nenhuma empresa pagava imposto acima de 12,5%) Quer coisa melhor que isso? Era o prato da hora. Resquícios dessa receita, agora indigesta, ainda frequentam a agenda do grupo pró-mercados que participa da equipe de transição da presidente-eleita Dilma Rousseff;
7) o desfecho irlandês recomendaria maior prudência na transposição de seus fundamentos aos ares tropicais. Os números indicam que o banquete redundou em um artordoante desarranjo gastrointestinal que transformou o “Tigre Celta” numa espécie de Haiti financeiro. A saber:
a) a economia irlandesa degringola desde a explosão da bolha financeira em 2008: de lá para cá o país acumula uma queda de apreciáveis 11,6% do PIB — taxa que o coloca algumas cabeças à frente do que se poderia chamar de recessão. Depressão talvez seja um termo mais apropriado para a convalescência de sangue, suor e lágrimas que pode durar até 15 anos;
b) a Irlanda quebrou quando os fluxos de capitais deixaram de alimentar a ciranda doméstica ancorada em desonerações atraentes aos fundos especulativos, cuja maior obra foi a bolha a imobiliária, agora em estado terminal.
c) os preços dos imóveis já perderam 50% do valor; a inadimplência grassa junto com o desemprego, a fuga de capitais e o arrocho salarial. Há milhares de imóveis vazios e os bancos estão virtualmente falidos: para salvá-los, o país negocia um empréstimo de 100 bilhões de euros com o FMI, sujeito às condicionalidades conhecidas.
d) o que a frivolidade midiática esquece, porém, é que o “Tigre Celta” quebrou, sobretudo, porque não dispunha mais de políticas públicas, de aparato público e, sobretudo, de ideologia do interesse público para contrastar a derrocada dos mercados especulativos com ações anticíclicas em defesa do emprego e da sociedade.
e) o “ajuste irlandês” cantado em prosa e verso pelos bardos da mídia nativa havia reduzido o país a uma extensão direta dos mercados. Não havia como reagir a seus próprios instintos suicidas. A crise fulminou a Irlanda porque o modelo neoliberal irlandês era a própria essência da crise. Que sirva de alerta aos discípulos da “agenda das reformas” que participam ativamente da equipe de transição da presidente eleita Dilma Rousseff.
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