25/03/2014
GOLPISTAS E MACONHEIROS
Enquanto jovens que querem legalizar a maconha são tratados na pancada, quem defende golpe militar é tratado a pão de ló
Da IstoÉ Independente - 25/03/2014
Paulo Moreira Leite
A importância dos protestos a favor de um golpe militar no fim de semana reside em sua desimportância.
O povo fez sua
parte. Ao ignorar as manifestações, demonstrou sua rejeição a aventuras
contra a democracia e contra a liberdade.
Os sociólogos e analistas
políticos que adoram falar numa “cultura autoritária” do brasileiro,
sempre útil quando se quer achar uma justificativa para o próprio
autoritarismo, já estavam com o argumento no bolso para ser utilizado
caso algum protesto tivesse reunido um pouco de gente a mais. Tiveram
de ficar em silêncio.
O fiasco da marcha dos
golpistas não terminou bem para todo mundo, porém. A marcha foi tratada
de forma tolerante, hospitaleira até, por determinados meios de
comunicação.
O que se viu foi o seguinte.
-- Você vai ao cinema?
-- Não. Vou pedir um golpe de Estado.
E isso é grave, até porque não resiste a uma comparação.
Há vários anos que assistimos a
um ritual conhecido. Toda vez que estudantes e jovens procuram
organizar uma marcha pela legalização da maconha, surgem vozes dispostas
a proibir a manifestação. Mesmo reconhecendo que vivemos num país onde a
liberdade de expressão é um direito fundamental, não faltam
questionamentos.
Já em 2010, o desembargador Sergio Ribas afirmou:
“Enquanto não houver provas
científicas de que o ‘uso da maconha’ não constitui malefícios à saúde
pública e que a referida substância deva sair do rol das drogas
ilícitas, toda tentativa de se fazer uma manifestação no sentido de
legalização da ‘maconha’ não poderá ser tida como mero exercício do
direito de expressão ou da livre expressão do pensamento, mas sim, como
sugestão ao uso estupefaciente denominado vulgarmente ‘maconha’,
incitando ao crime, como previsto no artigo 286, do Código Penal, ou
ainda, como previsto na lei especial, artigo 33, 2º, da Lei
11.343/2006.”
Um ano antes, em 2009, a
desembargadora Maria Tereza do Amaral já havia dito que: “não se
desconhece o direito constitucional à liberdade de expressão e reunião,
que, à evidência, não está se afrontando neste caso, porquanto, não se
trata de um debate de idéias, mas de uma manifestação de uso público
coletivo da maconha”.
Não sou a favor da legalização
da maconha. Mas admito que há um lugar para que isso seja debatido em
nossa sociedade e que as pessoas favoráveis a medida possam
expressar-se. O argumento para proibir a marcha da maconha dizia a
que a liberdade de expressão também tem limites numa sociedade
democrática, principalmente quando atenta contra a ordem
pública/jurídica, ou a paz social.
Ordem pública? Paz social? Com golpe?
Pergunto por que esses mesmos questionamentos não foram feitos diante da marcha dos golpistas.
Acho que ninguém precisa de “provas científicas” de que as ditaduras fazem mal a nossa vida pública.
Não estamos falando de uma
medida pontual, que diz respeito a uma droga específica, como a maconha,
mas de uma garantia fundamental do Estado de Direito. A democracia,
para os brasileiros, não está mais em discussão desde 1988, pelo menos.
Naquele ano, ela entrou na Constituição como cláusula pétrea – que não
pode ser reformada e que, conforme entendimento do Supremo, o
Congresso
sequer tem o direito de debater se irá reformar ou não. O artigo 60 da
Carta diz:
“Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a
abolir:
I - a forma federativa de Estado;
II - o voto direto, secreto, universal e periódico;
III - a separação dos Poderes;
IV - os direitos e garantias individuais.
Isso quer dizer o seguinte. Não
se pode debater o retorno da censura nem da tortura nem tentar
legalizar o racismo. O voto direto não pode ser abolido e assim por
diante.
Desse ponto de vista, o que se
viu no fim de semana foi puro absurdo – reforçado quando se verifica o
tratamento dispensado aos garotos que pediam a legalização da maconha.
Eles tomaram porrada. Foram feitas prisões. Com o pretexto de que eles
pretendiam fumar maconha na rua – o que é proibido e pode ser punido na
forma da lei – proibiu-se que manifestassem sua opinião, o que é
perfeitamente legítimo.
E aí o que nós vimos no fim de semana foi outro fenômeno político.
Em vez de ser
rejeitado de forma absoluta pretendeu-se dispensar à ideia de um golpe
de Estado um tratamento relativo, com argumentos supostamente
equilibrados, ora contra, ora a favor.
Vamos “debater” a ditadura? Procurar seu lado "bom"?
É inaceitável. O que se fez na rua no fim de semana foi a apologia de um crime.
Mas dá para compreender como manifestação política.
A experiência ensina
que a democracia sempre se torna um valor relativo quando deixa de
atender a determinados interesses. Nessas horas, as juras de amor pelo
regime são acompanhadas de muitos mases, poréns, entretantos e
todavias... Erros, falhas, incongruências de um governo são apresentados
como falhas do próprio sistema, como justificativas para questioná-lo
nas entrelinhas.
Fico imaginando se alguém
questiona a democracia, nos Estados Unidos (nos Estados Unidos!) toda
vez que Barack Obama tem o governo paralisado porque atingiu o limite de
gastos no orçamento.
É isso o que se vê
hoje e nós sabemos muito bem por que. Apos três derrotas consecutivas
em eleições presidenciais, ameaçados de enfrentar um quarto fracasso em
outubro, conforme dizem todas as pesquisas de intenção de voto, os
filhos, netos e bisnetos ideológicos dos golpistas de 64 sonham com uma
revanche.
Acredite: sonham com uma Venezuela e o sufoco imposto a Nicolas Maduro.
Não suportam a possiblidade de
enfrentar mais quatro anos longe do poder, com um governo que, apesar de
muitos trancos, barrancos e solavancos, tem conseguido manter uma
política de distribuição de renda, preservação com emprego e dos
salários.
Confiando na perda de memória
de 1964, os marchadeiros de 2014 mostram que perderam até a vergonha.
Têm coragem de falar que só querem uma intervenção pontual, de curta
duração. Nem neste aspecto são originais.
No 1 de abril de 1964, é bom
lembrar, falava-se uma intervenção tão curta que os militares iriam se
retirar a tempo da retomada do calendário eleitoral, em 1965.
Paulo Moreira Leite. Diretor da Sucursal da ISTOÉ em Brasília, é autor de "A Outra História do Mensalão". Foi correspondente em Paris e Washington e ocupou postos de direção na VEJA e na Época. Também escreveu "A Mulher que Era o General da Casa".
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