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21/05/2014
O justiceiro de toga
Joaquim Barbosa novamente extrapola contra os “mensaleiros” e é criticado pelo mundo jurídico
Fabio Rodrigues Pozzebom/ABr
Nos bastidores do STF comenta-se: ele trocou o posto de ministro pelo de carcereiro
por Cynara Menezes
Houve certa vez um
juiz na Grécia antiga que passou à história por seu poder e extremo
rigor. Tanto fazia se o crime fosse furto ou assassinato, ambos eram
punidos com a morte. Esse legislador se chamava Drácon (650-600 a.C.) e
sobre ele diria um orador ateniense que escrevera leis com sangue, e não
com tinta. Sua celebridade não é, portanto, exatamente digna de
orgulho.
Nos últimos dias, o epíteto “draconiano”
foi repetido muitas vezes em conversas no meio jurídico da capital para
se referir ao presidente do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa.
Houve também quem o comparasse a Tomás de Torquemada, o inquisidor-geral
dos reinos de Castela e Aragão, responsável por levar milhares à
fogueira no século XV. Nada lisonjeiro para o ministro. A causa das
comparações é o excesso de rigor com que Barbosa age em relação e tão
somente em relação aos condenados do chamado “mensalão”, principalmente o
ex-ministro José Dirceu.
Na sexta-feira 9, o presidente do Supremo
negou novamente a Dirceu, preso em regime semiaberto na Penitenciária
da Papuda, o direito de trabalhar fora durante o dia. Segundo Barbosa,
seria preciso cumprir um sexto da pena para obter o direito. Com a
ordem, desfez de forma monocrática um entendimento do Superior Tribunal
de Justiça de 1999 que permite o trabalho de detentos no regime
semiaberto até hoje. Ou seja: sua decisão não atinge apenas Dirceu, seu
alvo preferencial, mas milhares de encarcerados nas mesmas condições em
todo o País.
As críticas a Barbosa partiram de todas
as direções: juristas de diferentes espectros ideológicos, além da Ordem
dos Advogados do Brasil no Distrito Federal, condenaram a decisão. A
mais contundente divergência em relação ao entendimento do presidente do
Supremo partiu, porém, de seu antecessor no cargo, Carlos Ayres Britto.
Em entrevista exclusiva a CartaCapital, Ayres Britto considerou
que negar ao preso em semiaberto o direito de trabalhar fora não é
praticar uma visão humanista do Direito e se assemelha a uma decisão
“taliônica”: olho por olho, dente por dente. “Isso remonta aos tempos da
barbárie.”
“Peço data venia
ao ministro Joaquim, mas não concordo com seu entendimento. Meu modo de
interpretar é mais humanista”, afirmou Ayres Britto. “O regime
semiaberto não passa pela necessidade de cumprimento de um sexto da
pena. Como requisito de progressão, para saltar de uma pena mais dura
para uma mais branda, sim. A pena tem dois significados: o castigo, que é
o caráter retributivo, o indivíduo paga pelo erro cometido, e o caráter
ressocializador. É um signo de humanismo e de civilização de um povo
incorporar à pena sua dimensão ressocializadora. E o trabalho é um
mecanismo de ressocialização.”
Disse ainda Ayres Britto: “Entre o
trabalho externo e o interno, é preferível o externo, porque o interno
tem um caráter estigmatizante e o externo é extramuros. O apenado passa a
ser visto pela sociedade como alguém em franco processo de recuperação e
isso é bom para atenuar o estigma. O Direito humanista preza pela
desestigmatização do apenado, porque isso é um preconceito. O preso é
privado da liberdade, não da dignidade. Melhorar sua imagem faz parte do
processo.”
O ex-presidente do STF, condutor do julgamento do
“mensalão”, lembrou que a Lei de Execuções Penais fala do trabalho em
colônia industrial ou agrícola, inexistente no Brasil. “O preso não pode
pagar o pato por uma omissão do Estado. Foi por isso que se chegou ao
entendimento permitindo o trabalho externo no semiaberto.” Para Britto o
julgamento foi “legítimo” e é importante continuar a ser “exemplar” na
execução.
“Não se pode ser exemplar no julgamento e
errar na execução. O preso não pode ir para um regime mais severo do
que o que foi condenado. Se foi para o semiaberto, tem que desfrutar do
semiaberto”, defendeu. “Não se pode praticar nem o Direito Penal do
compadrio nem o do inimigo, que estigmatiza o preso, o réu, e o vê como
uma besta-fera, um cão dos infernos. É preciso muito equilíbrio nesta
hora.”
Ex-presidente do
STF entre 1995 e 1997, Sepúlveda Pertence concordou com Ayres Britto na
manutenção do entendimento do STJ, ao contrário do que prega Barbosa.
“Independentemente da discussão teórica sobre a Lei de Execução Penal,
que é confusa, existe um entendimento do STJ e milhares de presos
beneficiados por ela. Eu seguiria esse entendimento.”
Um aspecto ilustrativo da escolha de
Barbosa para castigar os “mensaleiros” é que, no projeto de reforma da
Lei de Execução Penal a ser votado neste ano pelo Congresso, os artigos
sobre o trabalho do preso foram modificados e preveem o trabalho externo
não só para condenados ao semiaberto como ao regime fechado,
independentemente da fração de pena cometida. A diferença é que os
presos em regime fechado estariam sujeitos à vigilância constante. O
projeto deixa claro o caráter ressocializante do trabalho. “Não se trata
de benefício penitenciário, mas de componente da própria execução penal
tendente à reintegração social do apenado”, explica o texto.
O próprio procurador-geral da República,
Rodrigo Janot, emitiu parecer favorável ao trabalho externo de Dirceu.
“No que concerne ao requerimento de trabalho externo ao sentenciado, não
há nada a opor, porque, do que se tem conhecimento, os requisitos
legais foram preenchidos”, afirmou ao arquivar o processo que investigou
o suposto uso de celular por Dirceu na Papuda, uma “regalia” na prisão.
Uma comissão de deputados que vistoriou a penitenciária tampouco
constatou flagrantes diferenças de condições na cela do ex-ministro e
dos demais detentos.
O fato de Joana Saragoça, filha de
Dirceu, ter pegado carona com agentes penitenciários e furado a fila de
visitas deu novo fôlego a Barbosa para recusar a autorização ao
ex-ministro. “É lícito vislumbrar na oferta de trabalho em causa uma
mera action de complaisance entre copains (ação entre amigos, em francês),
absolutamente incompatível com a execução de uma sentença penal. É que,
no Brasil, os escritórios de advocacia gozam, em princípio, da
prerrogativa de inviolabilidade (estatuto da OAB), que não se
harmoniza com o exercício, pelo Estado, da fiscalização do cumprimento
da pena”, argumentou o presidente do Supremo.
Em resposta por escrito, o advogado José Gerardo Grossi,
disposto a contratar Dirceu, chamou publicamente Barbosa de Torquemada.
“A visão de Justiça Penal, dele, é torquemadesca, ultramontana. Houvesse
de escolher entre Tomás de Torquemada e o bom Juiz Magnaud (magistrado francês célebre por suas decisões consideradas humanitárias), certamente ficava com este.”
O advogado
Luis Alexandre Rassi, empregador de outro condenado, João Paulo Cunha,
negou a inexistência de fiscalização do “Confere” (como é chamado pelos
presos o órgão avaliador do trabalho externo). “Eles já estiveram aqui
ao menos sete vezes”, afirma Rassi. Ele prevê a interrupção do benefício
a Cunha. Por causa da decisão sobre Dirceu, foi revogado o direito a
trabalho de Delúbio Soares, Romeu Queiroz e Rogério Tolentino. Não se
sabe se Barbosa fará o mesmo com os cerca de 20 mil presos em regime
semiaberto liberados a trabalhar fora da prisão.
A defesa de Dirceu anunciou a decisão de recorrer à
Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
A ordem de Barbosa pode
ainda ser derrubada no plenário do STF, mas, incrivelmente, depende do
presidente da Corte colocar o assunto em pauta: a agenda é prerrogativa
do comando do tribunal, que há meses não vota nenhum tema importante.
Nos bastidores do STF, comenta-se que Barbosa trocou o ofício de
ministro da mais alta Corte pela função bem menos nobre de carcereiro de
Dirceu. Por que seus pares se calam?
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