30/05/2014
O NOVO PAPEL DE JOAQUIM
Ao deixar STF, ministro ficará longe de cenas constrangedoras que aguardam futuro da AP 470
ISTOÉIndependente - 30/05/2014
Paulo Moreira Leite
A saída de Joaquim Barbosa do
STF representa um alívio para a Justiça do país e é uma boa notícia para
os fundamentos da democracia brasileira. Abre a oportunidade para a
recuperação de noções básicas do sistema republicano, como a separação
entre poderes, e o respeito pelos direitos humanos – arranhados de forma
sistemática no tratamento dispensado aos réus da Ação Penal 470,
inclusive quando eles cumpriam pena de prisão.
Ao aposentar-se, Joaquim
Barbosa ficará longe dos grandes constrangimentos que aguardam “o maior
julgamento do século,” o que pode ser util na preservaçãdo do próprio
mito.
Para começar, prevê-se, para
breve, a absolvição dos principais réus do mensalão PSDB-MG, que sequer
foram julgados – em primeira instância – num tribunal de Minas Gerais.
Um deles, que embolsou R$ 300 000 do esquema de Marcos Valério – soma
jamais registrada na conta de um dirigente do PT -- pode até sair
candidato ao governo de Estado.
Joaquim deixa o Supremo depois
de uma decisão que se transformou em escândalo jurídico. Num gesto que
teve como consequencia real manter um regime de perseguição permanente
aos condenados da AP 470, revogou uma jurisprudência de quinze anos, que
permitia a milhares de réus condenados ao regime semi-aberto a
trabalhar fora da prisão -- situação que cedo ou tarde iria incluir José
Dirceu, hoje um entre tantos outros condenados. Mesmo Carlos Ayres
Britto, o principal aliado que Joaquim já fez no STF, fez questão de
criticar a decisão. Levada para plenário, essa medida é vista como uma
provável derrota de Joaquim para seus pares que, longe de expressar
qualquer maquinação política de adversários, apenas reflete o desmonte
de sua liderança no STF.
Em outro movimento na mesma
direção, o Supremo acaba de modificar as regras para os próximos
julgamentos de políticos. Ao contrário do que se fez na AP 470 – e só
ali -- eles não serão julgados pelo plenário, mas por turmas em separado
do STF. Não haverá câmaras de TV. E, claro: sempre que não se tratar
de um réu com direito a foro privilegiado, a lei será cumprida e a
ninguém será negado o direito de um julgamento em primeira instância,
seguido de pelo menos um novo recurso em caso de condenação. É o
desmembramento, aquele recurso negado apenas aos réus da AP 470 e que
teria impedido, por exemplo, malabarismos jurídicos como a Teoria do
Domínio do Fato, com a qual o Procurador Geral da Republica tentou
sustentar uma denúncia sem provas consistentes contra os principais
réus.
Hoje retratado como
uma autoridade inflexível, incapaz de qualquer gesto inadequado para
defender interesses próprios – imagino quantas vezes sua capa negra será
exibida nos próximos dias, num previsível efeito dramático – Joaquim
chegou ao STF pelo caminho comum da maioria dos mortais. Fez campanha.
Quando duas aguerridas
parlamentares da esquerda do PT – Luciana Genro e Heloísa Helena –
ameaçaram subir à tribuna do Congresso para denunciar um caso de
agressão de Joaquim a sua ex-mulher, ocorrido muitos anos antes da
indicação, quando o casal discutia a separação, o presidente do partido
José Genoíno (condenado a seis anos na AP 470) correu em defesa do
candidato ao Supremo. Argumentou que a indicação representava um avanço
importante na vitória contra o preconceito racial e convenceu as duas
parlamentares. (Dez anos depois desse gesto, favorável a um cidadão que
sequer conhecia, Joaquim formou sucessivas juntas médicas para examinar o
cardiopata Genoíno. Uma delas autorizou a suspensão da prisão
domiciliar obtida na Justiça).
O diretor do Banco
do Brasil Henrique Pizzolato (condenado a 12 anos na AP 470) foi
procurado para dar apoio, pedindo a Gilberto Carvalho que falasse de seu
nome junto a Lula. José Dirceu (condenado a 10 anos e dez meses,
reduzidos para sete contra a vontade de Joaquim), também recebeu pedido
de apoio. Dezenas – um deputado petista diz que eram centenas – de
cartas de movimentos contra o racismo foram enviadas ao gabinete de
Lula, em defesa de Joaquim. Assim seu nome atropelou outro juristas
negros – inclusive um membro do Tribunal Superior do Trabalho, Carlos
Alberto Reis de Paula – que tinha apoio de Nelson Jobim para ficar com a
vaga.
Quando a nomeação enfim saiu,
Lula resolveu convidar Joaquim para acompanha-lo numa viagem
presidencial a África. O novo ministro recusou. Não queria ser uma peça
de marketing, explicou, numa entrevista a Roberto dÁvila. Era uma
referência desrespeitosa, já que a África foi, efetivamente, um elemento
importante da diplomacia brasileira a partir do governo Lula, que ali
abriu embaixadas e estabeleceu novas relações comerciais e diplomáticas.
De qualquer modo, se era
marketing convidar um ministro negro para ir a África, por que não
recusar a mesma assinatura da mesma autoridade que o indicou para o
Supremo?
À frente da AP
470, Joaquim Barbosa jamais se colocou na posição equilibrada que se
espera de um juiz. Não pesou os dois lados, não comparou argumentos.
Através do inquérito 2474,
manteve em sigilo fatos novos que poderiam embaralhar o trabalho da
acusação e que sequer chegaram ao conhecimento do plenário do STF – como
se fosse correto selecionar elementos de realidade que interessam a
denúncia, e desprezar aqueles que poderiam, legitimamente, beneficiar
os réus. Assumiu o papel de inquisidor, capaz de tentar
destruir, pela via do judiciário, aquilo que os adversários do governo
se mostravam incapazes de obter pelas urnas.
Ao verificar que o
ministro era capaz de se voltar em fúria absoluta contra as forças
políticas que lhe deram sustentação para chegasse a mais alta corte do
país, os adversários da véspera esqueceram por um minuto as
desconfianças iniciais, as críticas ao sistema de cotas e todas
políticas compensatórias baseadas em raça.
Passaram a dizer, como
repete Eliane Cantanhede na Folha hoje, que Joaquim rebelou-se contra o
papel de “negro dócil e agradecido.” Rebelião contra quem mesmo? Contra o
que? A favor de quem?
Paulo Moreira Leite. Diretor da Sucursal da ISTOÉ em Brasília, é autor de "A Outra História do Mensalão". Foi correspondente em Paris e Washington e ocupou postos de direção na VEJA e na Época. Também escreveu "A Mulher que Era o General da Casa".
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