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28/05/2014
O emprego e a urna
O avanço da extrema direita numa Europa com 26 milhões de desempregados mostra o quanto é perigosa a agenda que pretende replicar aqui o arrocho praticado lá.
por: Saul Leblon
Berço do Renascimento e das ideias libertárias, a Europa se transformou em um enorme depósito de desempregados.
Vinte e seis milhões de trabalhadores foram cuspidos do mercado de trabalho pelo arrocho neoliberal que se arrasta por seis anos.
Vinte e cinco por cento dos eleitores do continente responderam à desordem dando seus votos às ideias xenófobas, de extrema direita, eurocéticas e fascistas nas eleições deste domingo, na renovação do parlamento europeu.
O conservadorismo brasileiro faz olhar de paisagem.
A mídia trata o terremoto como um sismo em terras distantes.
Um assunto estranho a sua pauta.
Não é.
Os interesses que modularam o funeral do Estado Social europeu nas últimas décadas, e jogaram a pá de cal nesta crise, estão mais do que nunca atuantes na disputa presidencial em curso no Brasil.
O palanque conservador nomeia o arrocho fiscal, de consequências sabidas, como a principal alavanca corretiva para os gargalos da economia brasileira.
Trata-se de recuar o Estado para o mercado agir e a sociedade prosperar.
É a ‘contração expansiva’.
Bordão do discurso ortodoxo, ela resultou no estado de sítio econômico imposto à Grécia, Espanha, Portugal, Irlanda etc
A semeadura foi colhida nas urnas de domingo.
A extrema direita capturou um em cada quatro votos depositados nas urnas.
Seu lema remete à legenda dos salvadores da pátria dos anos 30.
Suásticas de ilustrativa rigidez prometiam então substituir a desordem econômica alarmante por uma ordem policial atuante.
Nenhuma outra dimensão da luta política condensa de forma tão significativa o conflito de interesses subjacente às eleições brasileiras de 2014 quanto a pergunta:
- Que futuro os candidatos reservam ao emprego no país? (leia a arguta análise Wanderley Guilherme dos Santos; nesta pág) .
A economia brasileira terá que criar 6,7 milhões de vagas nos próximos cinco anos. Pouco mais de 1,2 milhão por ano, para responder ao aumento da população economicamente ativa.
O cálculo é da Organização Internacional do Trabalho, a OIT.
No ciclo de governos do PT (de 2003 a 2013), o Brasil criou cerca de 15,8 milhões de empregos.
Os oito anos do governo Fernando Henrique Cardoso deixaram um saldo de apenas 800 mil vagas na economia.
Assim: um corte de milhão de vagas no primeiro mandato e um acréscimo de 1,8 milhão de empregos nos quatro anos seguintes.
A criação média de empregos no Brasil sob a presidência do PSDB, portanto, foi de 100 mil postos por ano.
No ciclo de governos progressistas (2003/2013) foi de 1,5 milhão/ano.
Ao mês, o PT gerou mais vagas do que cada ano de mandato tucano.
As condições econômicas foram distintas, pode-se argumentar.
Sem dúvida.
Assim como é forçoso recordar: desde 2007/2008 o mundo mergulhou na maior crise do capitalismo dos últimos 80 anos.
O que teria sido do país se os sábios banqueiros do PSDB estivessem no comando da economia então?
Não estavam e 11 milhões de empregos foram criados no período: quase 1,6 milhão de vagas por ano.
Ignorar a lógica econômica que condicionou o resultado das eleições europeias é perturbador.
Os mercados festejaram.
As bolsas europeias subiram com força na segunda-feira e nesta terça, enquanto os números consolidados dimensionavam os talhos no futuro da democracia.
A Frente Nacional (FN), de extrema direita, passará a dispor de 24 cadeiras parlamentares, tendo alcançado cerca de 25% dos votos na França – 18 pontos acima do último pleito (leia a análise de Eduardo Febbro, de Paris; nesta pág.).
Na Inglaterra, o direitista Partido da Independência se tornou a bancada mais forte, ultrapassando o Partido Trabalhista de David Cameron (leia a análise de Marcelo Justo, de Londres; nesta pág.)
Na Áustria, o Partido da Liberdade (FPÖ) conquistou 20,5% dos votos em todo o país.
Nos países escandinavos, as propostas da extrema direita abriram espaços inéditos no Parlamento de Estrasburgo, no qual 140 dos 751 assentos serão ocupados por deputados para os quais o ideário chauvinista e antissemita não é estranho.
O coletivo dos professores banqueiros do PSDB --e seu ativo retransmissor midiático-- está longe de endossar o nacionalismo de uma Europa machucada pelo alto preço da subordinação a uma moeda manejada em benefício de Berlim, Bruxelas e da alta finança.
Mas as ideias econômicas que alimentam seus candidatos formam costelas do mesmo espinhaço a partir do qual ganharam vida própria os Le Pen, o Aurora Dourada, os Nigel Farage e assemelhados.
A saber:
a) o país vive uma pressão inflacionária decorrente do excesso de demanda;
b) este deriva do abusivo aumento do poder de compra dos trabalhadores, puxado pelo reajuste real de 60% do salário mínimo nos governos Lula/Dilma;
c) a renda das famílias cresce ininterruptamente há mais de 4 anos ;
d) sustenta o insustentável: a expansão da demanda interna --atendida, em mais de 20%, no caso de manufaturados, pelas importações;
e) a solução para o estresse macroeconômico, somatizado em alta de preços, passa por um tratamento de choque: alta dos juros, arrocho fiscal do Estado, desemprego e achatamento salarial.
A mídia cuida de dar a esse receituário um sentido de urgência, travestido na narrativa diuturna de um país aos cacos.
Ingredientes objetivos evocados no confronto político de uma época muitas vezes são idênticos dos dois lados da disputa.
O que distingue as margens do rio é menos a sua composição e mais a natureza determinante que se atribui a cada um dos elementos.
Resistir passa por identificar politicamente os fatores que podem diferenciar a qualidade social da transição para um novo ciclo.
Hoje, por exemplo:
- a inflação reflete pressões conjunturais de safra, mas também outras que vieram para ficar, decorrentes de uma mudança estrutural na economia;
- o setor de serviços (telefonia, saúde, energia, bancos etc.), que teve gordas fatias capturadas pelo capital estrangeiro (leia neste blog ‘Um tabu que sangra o Brasil’) elevou sua participação no PIB, de 63% para 68,5% nos últimos oito anos;
- a inflação dos serviços tem crescido acima de 8% ao mês (dois ou três pontos acima da média);
- combate-se isso com mais oferta, fiscalização e, sobretudo, regras de reinvestimento;
- nenhuma ‘abertura comercial’ do tipo ‘deixai o mercado agir por conta própria’ vai resolver: serviços são de difícil importação;
- tampouco a alta dos juros supera o impasse; na verdade, apenas agravará seu outro polo : o enfraquecimento do setor industrial;
- o recuo da industrialização vem de longe: em 1985 o setor fabril produzia 27% da riqueza agregada ao PIB brasileiro; em 1996 a fatia retrocederia oito pontos e mais quatro agora, situando-se em 14%;
- a desindustrialização pesada do ciclo tucano foi impulsionada justamente pela panaceia livre mercadista que se pretende reeditar: privatizações, câmbio desfavorável, juro alto e abertura comercial suicida.
Os governos do PT agiram sobre essa lógica parcialmente. E de forma lenta.
Manteve-se até 2008 a dupla turbina do juro alto e câmbio valorizado.
A política econômica dos últimos anos, no entanto, introduziu um redefinidor potente na equação.
Ele dificulta sobremaneira a aplicação da vacina ortodoxa novamente.
Os programas sociais, o salário recomposto e a forte geração de emprego elevaram o mercado de massa à inédita condição de ator principal do enredo econômico brasileiro.
A centralidade desse novo protagonista vincula o ajuste preconizado pelo conservadorismo a uma taxa de desemprego de teor inflamável equivalente à produzida pela troika na UE.
Tampouco, porém, a nova escala social cabe no figurino da infraestrutura e da logística existente.
Estudos de organismos do Banco Mundial, citados pelo jornal Valor esta semana, indicam que o estoque de infraestrutura existente no país equivale a 16% do PIB.
A média nos países desenvolvidos é de 71% do PIB.
O novo mercado de massa reúne 53% da população, que nos últimos 12 anos elevou, por exemplo, em 182% o número de passageiros nos aviões e fez crescer em 182,5% o trânsito nas rodovias.
Como superar esse descompasso no menor prazo de tempo possível é a pergunta que grita na equação política brasileira, sendo cada vez mais audível nas ruas.
O conservadorismo quer resolver o impasse cortando o mal pela raiz.
Devolvendo a pasta de dente ao tubo do desemprego e do arrocho saneador.
Foi a solução endossada pela socialdemocracia europeia com as consequências contabilizadas no último domingo.
Cabe ao campo progressista brasileiro aprofundar a lógica oposta, abraçada pela esquerda que emerge das cinzas da rendição socialdemocrata.
Ou seja, dar ao novo protagonista social o espaço democrático necessário para renovar a correlação de forças do desenvolvimento brasileiro.
A eleição de outubro deve servir a esse credenciamento.
O resto é arrocho.
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