08/12/2013
RENUNCIA DE GENOÍNO É UM ALERTA
Da IstoÉ Independente - 08/12/2013
Capaz de enfrentar a ditadura de armas na mão deputado concluiu que não teria direito a ampla defesa de seu mandato no Congresso
Paulo Moreira Leite
Minha hipocrisia não chega a ponto de me dizer contente com a renúncia de José Genoíno a seu mandato de deputado federal.
Não tenho biografia para
julgar um personagem com sua história. Mas é uma decisão preocupante em
vários sentidos. Não por ele. Mas por nós.
Um cidadão que já
pegou em armas para enfrentar a ditadura militar em seu pior momento –
anos Médici – na guerrilha do Araguaia concluiu que não teria meios
para defender sua dignidade no Congresso. A lei assegura a Genoíno o
direito a ampla defesa mas ele concluiu que não teria esta garantia.
Com mais de
300 000 votos, Genoíno foi o deputado mais votado de São Paulo em 1998.
Também chegou a uma posição de destaque em 1994 e foi o único candidato
do PT, até hoje, que chegou a um segundo turno na eleição para o governo
paulista. Em 2010, já na ressaca da AP 470, deve 92 000 votos.
Tornou-se suplente e assumiu o mandato que exerceu até a semana passada.
Como
militante, Genoíno trouxe quadros novos e importantes para a política
brasileira, entre eles um líder chamado Chico Mendes e sua discípula
magrinha, Marina Silva. Formou pessoas e formou-se, também. Uma
democracia não se constrói com proclamações de fim-de-semana nem a
partir de frases de efeito. Precisa de lideranças legítimas, verdadeiros
representantes do povo, a altura de sua tarefa e de suas
responsabilidades. Apontado, pelos próprios colegas, como um dos
parlamentares mais influentes do Congresso brasileiro, um articulador
incansável e um negociador leal, Genoíno tornou-se um personagem
indispensável da democracia construída no país a partir de 1985, que
produziu o mais prolongado regime de liberdade de nossa história.
Eleito pela
primeira vez em 1982, Genoíno conversa à direita, ao centro, e é claro,
à esquerda. Semanas antes de enfrentar o problema do coração e fazer o
implante de um tubo de 15 cm na aorta, ele debatia com os colegas um
projeto de lei sobre consumo de drogas. Fiz uma entrevista com ele
naquela época. Alerta para as novidades que o tempo coloca, Genoíno
estava preocupado com a criação de uma legislação rígida demais, capaz
de obrigar jovens estudantes que fumam um baseado nos fins de semana a
cumprir penas de muitos anos como se fossem traficantes.
Vamos pensar de
novo. A Constituição garante, em seu artigo 55, que cabe ao Congresso
definir a cassação de mandato de parlamentares.
Embora o STF tenha
tentado transformar este artigo em simples enfeite, o Congresso reagiu
para manter sua prerrogativa, agora numa versão perversa e injusta:
pretendia fazer tudo, de qualquer maneira, para cassar o mandato de
Genoíno e agradar aquela fatia de eleitores convencidos de que a degola
espetacular de parlamentares pode ser útil para nosso sistema político.
Nossos parlamentares – os
piores, meus amigos -- estão de olho na reeleição e, sem verdadeiras
realizações para apresentar, sem um projeto consistente para oferecer,
se submetem as leis dos marketing político mais rasteiro. Eles é que
iriam cassar Genoíno, posar para as fotos com cenho franzido e
discursinho moralista que a TV adora.
Considerando a estatura
política de Genoíno, um gigante em comparação com 99,9% entre eles,
seriam obrigados, pela própria hipocrisia, a cumprir um ritual que já
vimos no próprio Supremo. Dizer que lamentavam cassar como corrupto um
parlamentar cujo maior patrimônio é uma casa modesta no Butantã, em São
Paulo.
Seria na verdade um crime
obviamente tão horrendo que era preciso acalmar a consciência fingir
arrependimento no mesmo instante.
A renuncia de Genoíno tem
este significado doloroso: é a comprovação de que o esforço de
criminalizar os políticos brasileiros e a própria atividade democrática,
que esteve no centro do discurso ideológico sobre a “ compra de votos “
que jamais seria demonstrada com fatos concretos, rendeu frutos,
convenceu muitas pessoas e gerou vários resultados daninhos.
Atirado naquele universo da “
publicidade opressiva” que marcou o julgamento, sem que o cidadão comum
tivesse acesso a uma visão equilibrada dos fatos, ele nunca foi ouvido
pelos brasileiros ao longo do julgamento e, para certificar-se de que
não será mais ouvido por um longo período, já recebeu uma sentença que
proíbe suas entrevistas. Ou seja: não só foi vítima de uma sentença
injusta mas perdeu o direito de reclamar.
E é vergonhoso
reparar que nenhum de nossos "jornalistas investigativos," nossos
editorialistas, colunistas, jurados do Premio Esso e outros campeões
domesticados pela profissão levantou-se para denunciar um ataque frontal
a liberdade de expressão, que não atinge apenas o condenado, mas o
próprio direito de todo repórter ouvir e entrevistar quem quiser, como
acontece em todo país onde a imprensa é livre.
Apesar da selvageria
de Guantanamo, reservada estrangeiros, a Justiça norte-americana, tão
lembrado como exemplo de direito e liberdade, não proíbe entrevistas
com condenados a penas graves, inclusive à pena morte.
Nenhum juiz
norte-americano tem o direito de achar que está sendo desafiado quando
um habitante do corredor da morte resolve defender seus direitos e
denunciar que é inocente e foi condenado injustamente. Vários
depoimentos dessa natureza renderam best-sellers e até filmes de
sucesso.
Determinados gestos também podem ser questionados no Brasil de 2013.
Sabe aquele punho erguido, no
dia em que Genoíno foi preso? Não pode. Irrita, provoca, deve ser
evitado. Foi uma das marcas dos protestos de junho mas considera-se que
não pode ser usado na coreografia dos condenados.
Compreende-se. Num universo
onde a palavra foi cassada e até um gesto com a mão é questionado, o
objetivo é impor a submissão, o silêncio. Todo ato de altivez, de
resistência, será condenado.
Procura-se mobilizar a turba, a
ralé, aqueles que não tem uma identidade social clara além do
ressentimento, como dizia Hanna Arendt. O argumento é vergonhosamente
antigo: é preciso combater o “privilégio”, a “mordomia”, os “direitos
humanos”, como prega o conservadorismo brasileiro desde o tempo em que
cidadãos como Genoíno, seus familiares e seus parentes, e tantas outras
pessoas que honraram a luta pela democracia, denunciavam a tortura nas
prisões da ditadura.
Quando resolveram que o
Congresso não deveria cumprir o artigo 55 e manter a palavra final sobre
a perda de mandato, os ministros do Supremo chegaram a definir qualquer
atitude contrária como “insubordinação.”
Estamos num
ambiente de incerteza e insegurança. Depois de um julgamento politizado,
assistimos a uma nova transmutação institucional. A medicina não é mais
medicina. Pode ser política.
Roberto Kalil, hoje
o cardiologista de maior prestígio do país, já deixou claro que
Genoíno enfrenta uma doença grave e crônica. Fabio Jatene, cirurgião do
mesmo quilate, também fez uma avaliação no mesmo sentido. Peritos do IML
do Distrito Federal e da Câmara de Deputados confirmam essa condição. E
mesmo doutores indicados por Joaquim Barbosa para fazer um laudo sem a
presença de um perito indicado por Genoíno – direito legal de todo
prisioneiro – foram incapazes de escrever coisa muito diferente. Mesmo
dizendo que não era “imprescindível” manter o deputado em regime
domiciliar, levantaram condicionantes de bem-estar e cuidados médicos
que não existem nos presídios brasileiros.
Mas nem assim o
direito de Genoíno a prisão domiciliar está assegurado. Pedindo que este
regime seja considerado definitivo, em vez de prolongar-se por apenas
90 dias, antes de uma nova revisão, como quer o procurador geral Rodrigo
Janot, seus advogados lembram que mesmo traficantes de drogas já
obtiveram este direito em nossos tribunais.
Eles também
recordam uma resolução da Vara de Execuções Criminais do Distrito
Federal, que reconhece a absoluta falta de condições de seus presídios
atenderem a casos de enfermidade grave.
Entende-se, então, o sentido da luta de Genoíno. Ele trava, no momento o combate político pelo direito a vida.
Paulo Moreira Leite. Diretor da Sucursal da ISTOÉ em
Brasília, é autor de "A Outra História do Mensalão". Foi correspondente
em Paris e Washington e ocupou postos de direção na VEJA e na Época.
Também escreveu "A Mulher que Era o General da Casa".
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