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04/02/2014
Para deixar de ser Cracolândia
Revista Forum - 4/3/2014
Histórias de pessoas que lutam contra a dependência química no local que até há pouco tempo era sinônimo de abandono e depredação, mostram esperança e expectativa por projetos de vida
Por Ivan Longo
Na
 última quarta feira (15) a prefeitura de São Paulo lançou um programa 
de tratamento de dependentes químicos em situação de rua inédito no 
Brasil, que até então se caracterizava basicamente pelo método da 
repressão policial e da internação compulsória. A operação “São Paulo de
 Braços Abertos”, inspirada em experiências canadenses e europeias, visa
 recuperar o usuário de droga que vive na rua por meio da reinserção 
social e do trabalho assistencial. Para isso, foi escolhida a região 
mais crítica de São Paulo em relação ao consumo e tráfico de crack: a 
Cracolândia, área do bairro da Luz, na região central, que 
historicamente abriga moradores de rua, usuários e traficantes.
O
 foco inicial da ação eram os moradores de rua que vivam nos barracos 
montados nas ruas Helvétia e Dino Bueno após a demolição dos cortiços em
 que vivam, realizada pelas antigas gestões municipais e pelo governo 
estadual. Foram abertas 400 vagas para participar do programa e cerca de
 300 pessoas que ali viviam de forma precária aderiram à operação de 
maneira voluntária. Com o programa, cada cadastrado passa a ter um 
trabalho de quatro horas diárias em serviços de zeladoria, como 
manutenção e limpeza de praças e parques da cidade, recebendo R$ 15 por 
dia trabalhado. Além disso, os beneficiários da operação contam com 
alimentação (café da manhã, almoço e jantar em um Bom Prato da região), 
acompanhamento médico e psicológico de funcionários das secretarias 
municipais de saúde e assistência social e estadia em hotéis da região 
para poderem dormir.
Como
 já esperado, o programa recebeu inúmeros ataques fundados em pré 
julgamentos e preconceitos. Falou-se em maquiagem para a Copa do Mundo, 
“bolsa crack”, “bolsa drogado” e diversos outros jargões que comumente 
são utilizados para deslegitimar políticas de assistência social. 
Ex-moradores de rua recém-cadastrados no programa foram bombardeados de flashs
 de fotógrafos e jornalistas que não hesitavam em classificá-los como 
drogados que viam no programa uma maneira de ganhar dinheiro fácil e que
 dificilmente deixariam a dependência química, desconsiderando qualquer 
história de vida de quem vive ali.
Passados
 dez dias desde o início da operação, o que se pode observar na 
Cracolândia é um cenário bem diferente do que existia há algumas 
semanas. Os barracos já não estão mais lá e a situação de abandono e o 
clima de medo deram lugar a um ambiente onde convivem trabalhadores, 
assistentes sociais e agentes de saúde. Fórum esteve no local 
durante a semana, até a manhã de quinta (23), mesmo dia em que a polícia
 civil do estado de São Paulo promoveu uma operação que põe em risco 
todo um processo de diálogo que resultou no lançamento do programa (leia
 ao fim da matéria).
 Uniformizados, cadastrados no programa Braços Abertos fazem limpeza na praça Princesa Isabel
Salário para comprar leite e fraldas
“Agora
 é bola pra frente, vida nova!”, “Melhorou 100%. É uma oportunidade pra 
gente mudar de vida, né?”, “Vou fazer um curso de capacitação e ser 
garçom, que é a minha especialidade!”, “Essa semana até comecei a 
estudar. Quero prestar vestibular e sair dessa vida”. Essas são algumas 
das frases ditas por dependentes químicos enquanto iniciavam os 
trabalhos de limpeza da praça Princesa Isabel na quinta-feira pela 
manhã. Sorridentes, eles trabalhavam em conjunto e contavam os planos 
para uma nova vida que vislumbram agora com as chances oferecidas pelo 
programa. 
Carlos
 Adão, por exemplo, é dependente químico e acaba de ter um filho. Com o 
Braços Abertos, passou a dormir em um quarto mais confortável com sua 
esposa e seu bebê, e ainda garante uma renda para se sustentar. 
“Ganhando esse meu primeiro salário vou comprar leite e fraldas para o 
meu filho.” Ele conta que o trabalho o ajuda a ocupar a cabeça e que, 
por isso, já está há uma semana sem usar crack. Revelou ainda que não vê
 a hora de começar seu curso de capacitação, também oferecido pela 
prefeitura por meio do programa, para começar a trabalhar com o que 
gosta e tocar sua vida. Adão quer trabalhar como eletricista.
Tatiane,
 voluntária da ONG Brasil Gigante, que auxilia nos trabalhos 
assistenciais dos dependentes químicos, acompanha grupos de trabalho 
diariamente na região. Ela orienta os cadastrados, os orienta nos 
serviços que realizam e é tratada como uma grande mãe. Carinhosamente 
chamada de “Morena” pelos usuários, a voluntária, que acompanha de perto
 a operação desde o início, se diz muito feliz com os resultados até o 
momento. “Eles estão muito empolgados, interessados. Até agora não vi 
nenhum caso de desistência. Largar a droga é um processo lento, não 
acontece de um dia para o outro. Mas só de eles demonstrarem essa 
vontade de reverter a situação que estão já é um grande primeiro passo”.
 Tatiane contou também que, durante essa semana, os agentes da ONG e da 
Secretaria de Assistência Social estão realizando conversas dinâmicas 
com os cadastrados para identificar gostos, habilidades e aptidões para,
 assim, encaminhá-los para um curso de capacitação profissional de 
acordo com as afinidades.
Para
 o psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira, diretor do Proad (Programa de 
Orientação e Assistência a Dependentes), da Universidade Federal de São 
Paulo e uma das maiores referências do assunto atualmente, o programa da
 prefeitura é o que há de mais efetivo no combate de uso de drogas, 
baseado na experiência internacional. Para ele, medidas repressivas ou 
coercitivas (como as de internação compulsória, já utilizadas na 
Cracolândia pelas gestões Serra/Kassab e pelo governo estadual) não 
funcionam. Em 90% dos casos de internação à força o usuário volta a usar
 drogas. 
Evelyn,
 que tem 21 anos e é dependente química, já tem consciência dessa raiz 
do problema. A jovem, que já foi presa, frequenta a Cracolândia desde os
 16 anos de idade e, depois de perder a casa, se mergulhou no consumo 
das drogas, chegando a consumir 50 pedras de crack por dia. Para sair 
dessa realidade, Evelyz diz que precisava ter de volta uma vida social, 
ou seja, viver a reinserção social citada por Dartiu que tira a pessoa 
da condição de vulnerabilidade. Com o Braços Abertos, Evelyn acredita 
ter conseguido ter “a vida social” que tanto queria, com trabalho, 
alimentação e moradia e, agora, pretende prestar vestibular e entrar em 
uma faculdade. Das 50 pedras que fumava por dia, essa semana fumou 
apenas 3, fato que é muito comemorado pela garota, e ilustra muito bem o
 conceito de redução de danos defendido pela prefeitura ao implantar o 
programa. 
Após dar entrevista, Evelyn (segunda da esquerda para a direita) pede para ser fotografada ao lado dos amigos
 Cadastrados do programa pedem para serem fotografados
Apesar
 da esperança dos usuários cadastrados no programa em sair daquela 
condição de dependentes químicos e moradores de rua, a maior parte deles
 acredita que somente o suporte oferecido pela prefeitura não é o 
suficiente. É muito comum ouvir entre eles que a iniciativa é ótima, mas
 que se a pessoa não tiver interesse em parar de usar o crack, podem 
pegá-la pelo colo, dar comida na boca e até levar para outro país que 
ela não vai deixar de usar. “A oportunidade está dada, agora tem que ter
 é força de vontade”, disse Valcemir, morador da Cracolândia há nove 
meses e usuário. Ele agora não vê a hora de começarem os cursos de 
capacitação para exercer sua profissão, que é de mecânico.
Há
 ainda quem acredite que o combate ao crack vá muito além das políticas 
sociais, do acompanhamento médico ou da força de vontade. Para o padre 
Júlio Lancellotti, da Pastoral dos Moradores de Rua da Igreja Católica, o
 programa é algo ainda experimental. Referência no trabalho com 
moradores de rua e pessoas em situação de vulnerabilidade social, o 
padre diz que, aparentemente, é tudo muito bonito, mas que não vislumbra
 uma política pública. “É um trabalho muito local. Tem que ser para a 
cidade toda. Além disso, as respostas ao problema não devem ser únicas.,
 têm de ser tratadas de acordo com as necessidades de cada pessoa. 
Também não se falou em nenhum tipo de ação para coibir o tráfico. O uso 
da droga está totalmente associado ao tráfico e esses problemas não 
podem ser resolvidos separadamente”, argumenta o padre, ressaltando que a
 redução de danos é somente uma das possibilidades dentre tantas outras 
que devem ser trabalhadas em uma política para recuperação de 
dependentes químicos.
Apesar dos inúmeros desafios que os usuários cadastrados no programa sabem que terão de enfrentar na recuperação, a alegria de contar com um trabalho e um lugar para dormir no final do dia os motiva a seguir em frente. Ao contrário do que muitos pensaram nos primeiros dias da operação, eles estão engajados no serviço e fazem questão de mostrar isso posando para fotos.
 O casal, fruto do Braços Abertos, Jamaica e Bia
É
 o caso do Narciso, dependente químico há mais de 20 anos, fumando uma 
média de 50 pedras por dia. Sua relação com as drogas piorou 
principalmente depois que perdeu os pais. Ex-detento do Carandiru, onde 
pegou mais de 20 anos de prisão por latrocínio, o usuário contraiu 
meningite e perdeu o movimento das pernas. Mesmo na condição de 
cadeirante, entrou no programa e hoje auxilia os seus companheiros nos 
serviços de zeladoria, trabalhando como fiscal. Segundo ele, nesta 
semana não fumou sequer uma pedra por estar trabalhando e focado em 
mudar sua situação.
Narciso almoçando no Bom Prato depois de uma manhã de serviço
oje
 (sexta feira, 24), os usuários cadastrados receberão o primeiro salário
 pelos dias trabalhados. Na primeira semana, de adaptação, mesmo os que 
faltaram ao serviço vão contar o valor integral dos R$ 15 por dia. Mas, a
 partir da semana que vem, de acordo com os funcionários da Secretaria 
Municipal de Assistência Social, quem faltar ao trabalho será 
descontado, ao menos que esteja doente ou intoxicado e passe pela 
assistência médica do programa.
É
 claro que não se sabe ainda que tipos de resultados serão constatados 
depois de um, dois ou três meses de operação. Mas, no que depender da 
esperança e da vontade de mudar desses novos ex-moradores de rua, a 
Cracolândia não será mais o abrigo dos que desistiram da vida. 
No
 final da tarde desta quinta feira (23), policiais do Departamento 
Estadual de Prevenção e Repressão ao Narcotráfico (Denarc), da Polícia 
Civil, realizaram uma operação surpresa na região da Cracolândia e 
reprimiram violentamente usuários de crack que estavam pelas ruas. Cerca
 de dez viaturas cercaram a rua Barão de Piracicaba, onde se concentram 
dependentes químicos que não estão cadastrados no Braços Abertos. Os 
policiais atiraram contra a multidão com balas de borracha, jogaram 
bombas de efeito moral e utilizaram spray de pimenta. Há relatos de 
usuários que ficaram feridos com a ação.
A
 assessoria de imprensa do Denarc informou que a ação foi realizada para
 prender dois traficantes investigados. Ao todo, 30 pessoas foram 
detidas. A Polícia Civil informou ainda que a ação era de rotina e que, 
por isso, não precisavam avisar nada à prefeitura, mesmo com o programa 
em andamento.
Há
 seis meses a prefeitura vem trabalhando no diálogo pacífico com os 
usuários de crack da região para a criação do Braços Abertos. Com a 
atitude repressora da Polícia Civil, porém, a operação agora fica 
ameaçada, uma vez que os usuários podem associar a violência policial ao
 trabalho de assistência social realizado por meio do programa.
Em nota, a prefeitura de São Paulo afirmou que repudia este tipo de intervenção.
 O prefeito Fernando Haddad (PT), em entrevista coletiva, também se 
manifestou a respeito e classificou o episódio como “lamentável”. “Todas
 as ações têm sido pactuadas. Essa ação não foi pactuada com o governo 
municipal. Se tivéssemos tomado conhecimento, não concordaríamos com a 
maneira como foi procedido. Os agentes do município estão sendo 
convocados, porque estão em choque com o que aconteceu”, afirmou o 
prefeito, que também ligou para o governador Geraldo Alckmin para expor a
 situação. 






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