Por André Barrocal, na Carta Capital
O leão do imposto de renda mia feito gato com os ricos,
como atestam dados recém-divulgados pela própria Receita Federal. Os
maiores milionários a prestar contas ao fisco, um grupo de 71.440
brasileiros, ganharam em 2013 quase 200 bilhões de reais sem pagar nada
de imposto de renda de pessoa física (IRPF). Foram recursos recebidos
por eles sobretudo como lucros e dividendos das empresas das quais são
donos ou sócios, tipo de rendimento isento de cobrança de IRPF no
Brasil.
Caso a bolada fosse taxada com a alíquota máxima de
IRPF aplicada ao contracheque de qualquer assalariado, de 27,5%, o País
arrecadaria 50 bilhões de reais por ano, metade do fracassado ajuste fiscal arquitetado
para 2015 pelo ministro da Fazenda, Joaquim Levy. Detalhe: os 27,5% são
a menor alíquota máxima entre todos os 116 países que tiveram seus
sistemas tributários pesquisados por uma consultoria, a KPMG.
A renda atualmente obtida pelos ricos sem mordidas do
IRPF – 196 bilhões de reais em 2013, em números exatos – tornou-se
protegida da taxação há 20 anos. No embalo do Consenso de Washington e
do neoliberalismo do recém-empossado presidente Fernando Henrique
Cardoso, o governo aprovou em 1995 uma lei instituindo a isenção.
O paraíso fiscal foi criado sob duas alegações.
Primeira: as empresas responsáveis por distribuir lucros e dividendos
aos donos e sócios já pagam IR como pessoa jurídica. Segunda: com mais
dinheiro no bolso, os ricos gastariam e investiriam mais, com vantagens
para toda a economia. Argumentos com cheiro de jabuticaba, sendo que o
segundo foirecentemente derrubado pelo Fundo Monetário Internacional em um relatório
sobre o qual pouco se falou no Brasil. Na Organização para a Cooperação
e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), organismo a reunir 34 países
desenvolvidos, só a Estônia dá a isenção.
“No Brasil, quem mais reclama são os que menos pagam
impostos”, diz Marcio Pochmann, ex-presidente do Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (Ipea). “A Receita é uma mãe para os ricos, o
Ministério da Fazenda é o Ministério social dos ricos.”
A boa vida garantida pelo fisco aos donos e sócios de
empresas ajuda a explicar algo curioso. O Brasil tornou-se uma pátria de
empresários nos últimos tempos. Possui mais gente nesta condição (7
milhões apresentaram-se assim na declaração de IR de 2014) do que a
trabalhar como empregado do setor privado (6,5 milhões). É a famosa
terceirização, com profissionais contratados na qualidade de PJ, não via
CLT.
A transformação de trabalho em capital é um fenômeno
mundial mas parece ainda mais “disseminada” e “impetuosa” por aqui, diz o
economista José Roberto Afonso, professor do Instituto Brasileiro de
Economia da Fundação Getúlio Vargas e autor do estudo Imposto de Renda e Distribuição de Renda e Riqueza no Brasil. Para ele, é urgente debater o assunto.
“O governo comemorava uma redução da concentração da
renda mas só considerava a de salários e a declarada nas pesquisas
censitárias”, afirma Afonso. “Se formos considerar também o declarado ao
imposto de renda, se descobre que daquelas pesquisas escapam parcela
crescente e majoritária das rendas de brasileiros de classe média e
alta, que passaram a receber como pessoa jurídica.”
Repleto de políticos ricos e devedores de gratidão a empresários
financiadores de suas campanhas, o Congresso tem uma resistência
histórica a corrigir as injustiças do sistema tributário brasileiro. A
Constituição de 1988 previu, por exemplo, a cobrança de um imposto sobre grandes fortunas, mas até hoje a nação espera pela aprovação de uma lei a tirar a taxação do papel. FHC chegou a propor tal lei.
Mas foi como senador, antes de chegar ao Planalto.O fim da isenção de
IPRF sobre lucros e dividendos, conta um ministro, era uma das medidas
no bolso do colete de Dilma Rousseff para ajudar no ajuste fiscal.
O problema, diz este ministro, é o provável boicote do Congresso contra
qualquer tentativa de taxar mais o “andar de cima”. O Palácio do
Planalto não quer comprar briga em vão.
Vez ou outra, algum parlamentar anima-se a propor tal
lei. No início do ano, foi a vez da deputada carioca Jandira Feghali,
líder do PCdoB, com a preocupação de direcionar os recursos só para a
saúde. Com seis mandatos seguidos, ela não se ilude com a chance de
aprovação de ideias como esta ou a taxação de jatinhos e iates com IPVA,
outra proposta dela. “Esse é um dos Congressos mais ricos e mais
influenciáveis pelo poder econômico da nossa história”, diz.
Os dados recém-divulgados pela Receita Federal sobre o
IRPF talvez possam ajudar a contornar tal resistência. Neste trabalho, o
fisco separou os contribuintes em onze faixas de renda, variáveis de
meio salário mínimo a 160 salários mínimos mensais. Em cada categoria,
podem ser vistos o número de pessoas ao alcance do imposto de renda da
pessoa física, seu patrimônio, renda, benesses e tributação efetiva. É a
mais completa e detalhada compilação de dados já feita pelo leão.
Em 2014, houve 26,5 milhões de declarações de IRPF.
Aquelas 71.440 pessoas com renda isenta de quase 200 bilhões de reais
estão no topo da pirâmide, faixa de renda superior a 160 salários
mínimos por mês. Juntas, elas detêm 22% do patrimônio e 14% da renda
nacionais. É como se cada uma tivesse salário mensal de 341 mil reais e
bens de 17,6 milhões. Apesar da riqueza, o IRPF pago por elas em 2013
somou míseros 6,3 bilhões de reais. Ou só 5,5% da arrecadação com IRPF.
Dados deste tipo são apresentados pelo economista
francês Thomas Piketty no livro “O Capital no Século XXI”, bíblia para
os interessados em saber mais sobre a concentração de renda pelo
planeta.
O Brasil ficou de fora da obra justamente porque a Receita não
tinha os dados de agora para fornecer antes. Espera-se que os acadêmicos
possam estudá-los daqui para a frente.
Um dos interessados no tema é diretor de Estudos e
Políticas Sociais do Ipea, André Calixtre. No fim ano passado, o
economista concluiu um estudo chamado Nas Fronteiras da Desigualdade Brasileira,
no qual sustentava que a distância entre ricos e pobres no País era bem
maior em termos patrimoniais do que em termos de renda. E que esse
padrão histórico havia se mantido apesar da distribuição de renda vista
na década passada. O trabalho partia das declarações de bens entregues
por candidatos a prefeito à Justiça Eleitoral em 2102.
Em uma primeira análise sobre os dados da Receita,
Calixtre viu sua hipótese se confirmar. Entre 2007 e 2013, diz ele, o
número de declarantes de IRPF a ganhar até cinco salários mínimos caiu
de 54% para 50%, enquanto os que recebem acima de 20 mínimos permaneceu
em 8,4%. Ao mesmo tempo, o estrato intermediário, a receber entre 5 e 20
mínimos mensais cresceu de 37,2% para 40,8%.
O rendimento tributável pela Receita detido por cada
segmento sofreu a mesma alteração no período de 2007 a 2013. O pessoal
de renda baixa morde agora uma fatia maior (de 20,9% para 21,9%), o
pelotão do meio idem (de 44,2%para 47,8%), enquanto a turma do topo fica
com um pouco menos (de 34,9% para 30,4%).
O problema, diz Calixtre, é que em termos patrimoniais
praticamente nada mudou neste período de seis anos. As pessoas a receber
até cinco salários mínimos ainda ficam com 14% do valor dos bens
declarados aos fisco, aquelas situadas entre 5 e 20 têm os mesmos 27% e o
andar de cima (mais de 20 mínimos) segue com 57%. “Democratizamos a
renda, falta democratizar a propriedade privada no Brasil”, afirma.
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de fato, os que mais reclamam são os que não pagam impostos. Querem tudo na mão e nem se mexem
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