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23/09/2014
“Dirigindo Chevette e namorando Creissom”: a campanha contra os médicos de família no Brasil
Publicado na BBC Brasil.
“Ao ouvir as histórias dos amigos, você ficava triste: os dermatologistas, todos bem de vida (…); o pessoal da cirurgia plástica chegando de carro importado e você caladinha, envergonhada de estar em um fim de mundo, dirigindo seu Chevette hatch, ano 87, com três calotas, e namorando Creisom, motorista da ambulância do seu município…”.
Esta é a descrição de um hipotético encontro de colegas de Medicina que aparece em uma apostila do Medcurso, o principal curso preparatório para concursos médicos no Brasil. A situação descrita acima introduz uma série de perguntas sobre a atenção básica de saúde. A “motorista do Chevette”, que aparece envergonhada, é uma médica que optou por atuar em um Posto de Saúde da Família (PSF) em uma cidade do interior. O material do curso preparatório chega a dizer ainda que líderes de esquerda como Hugo Chávez e Evo Morales seriam os “heróis” dos médicos que trabalham com atenção básica.
A apostila ilustra a imagem que médicos de família e comunidade – que atuam majoritariamente no SUS e em postos de saúde – têm entres os profissionais de Medicina no Brasil. Apesar de estarem no centro de programas de governo – como o Mais Médicos – e das propostas de candidatos à Presidência para a saúde, os médicos de família são ainda uma especialidade pouco conhecida da população e pouco procurada dentro das escolas de Medicina: dos cerca de 390 mil médicos no país, apenas cerca de 4 mil são médicos de família, cerca de 1% do total.
Profissionais que optaram pela especialidade relatam sofrer preconceito entre professores e colegas, apesar da importância da categoria no atendimento aos problemas de saúde mais básicos que afetam os brasileiros. “Sou formado há 12 anos e aconteceu em vários momentos em encontros de turma de me perguntarem quando farei uma especialidade de verdade”, disse Rodrigo Lima, diretor da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, à BBC Brasil.
“Eu já tive muitos alunos que chegaram a relatar: ‘Eu tenho vontade de ser médico de família, mas não sei como minha família encararia isso, não sei se vou conseguir convencê-los’. Para um aluno de 20 anos é difícil resistir à pressão de ter que ter o carro do ano, ser muito bem sucedido financeiramente. É o ideal que a sociedade tem do que é ser médico.”
Desvalorização
O Programa de Saúde da Família – criado durante o governo Fernando Henrique Cardoso – tem o objetivo de oferecer atendimento primário de saúde, que procure prevenir e resolver a maior parte dos problemas em determinado território sem a necessidade de encaminhamento para hospitais especializados. A estratégia foi ampliada durante os governos do PT.
Nos postos de saúde e unidades básicas, uma equipe de médicos, enfermeiros e agentes comunitários deve acompanhar até quatro mil pessoas – desde crianças até idosos. O bom funcionamento do modelo, que também é adotado por países como Inglaterra, Canadá e Austrália, ajudaria a evitar a superlotação de emergências e hospitais, um dos principais gargalos do atendimento médico no país.
Na prática, no entanto, os profissionais relatam unidades com demanda mais alta do que o previsto, condições precárias de trabalho, falta de materiais básicos para o atendimento e dificuldade de completar as equipes médicas.
“Os Postos de Saúde e Unidades Básicas de Saúde hoje não dão conta da demanda por uma série de razões. Então o que temos hoje é uma rede enorme de serviços que não conseguem resolver os problemas e cria nas pessoas a ideia de que ‘o postinho não resolve, o melhor é o hospital’”, diz Rodrigo Lima.
Além do Mais Médicos, que contratou profissionais brasileiros e estrangeiros para complementar equipes de saúde da família em todo o país, a formação de profissionais dispostos a atuar na atenção básica também foi alvo de diversas estratégias durante os governos Lula e Dilma. Entre elas, a mudança no currículo de Medicina – que passou a exigir que os alunos frequentem postos de saúde desde o início do curso, e o estímulo à abertura de mais programas de residência da especialidade no país.
Muitos desses programas, no entanto, não conseguem preencher boa parte das vagas, segundo a SBMFC. Para os médicos, é um sinal de que os estudantes precisam de mais estímulo para seguirem a carreira. O salário é considerado um dos fatores que desestimula os médicos – eles ganham em média R$ 8 mil, contando com bonificações oferecidas pelas prefeituras para complementar os salários.
“Nos últimos anos, o governo teve iniciativas que foram interessantes, mas não suficientes. Se você não botar dinheiro no bolso do cara para que ele pague as contas, ele não vai ficar”, disse Paulo Klingelhoefer de Sá, médico de família e coordenador do curso de Medicina da Faculdade de Medicina de Petrópolis (FMP), à BBC Brasil.
“Os alunos falam isso na minha
cara. Eu os coloco na atenção primária desde o começo do curso.
Eles
acham muito legal, ficam com pena da população, mas escolhem outro
caminho. Escolhem fazer oftamologia, radiologia, dermatologia. Dizem que
medicina da família é coisa para pobre.”
“De esquerda”
Segundo relatos colhidos pela BBC Brasil (leia abaixo) os médicos de família costumam ser vistos – até mesmo pelos pacientes – como profissionais de qualidade inferior, discriminados por receberem salários mais baixos em relação aos colegas e por serem considerados “de esquerda”.
Nas situações criadas para as perguntas sobre saúde da família, a apostila do Medcurso chega a dizer que “Evo Morales e Hugo Chávez passam a ser heróis” da personagem que começa a trabalhar em um Posto de Saúde da Família.
“Achamos que não valia a pena nos pronunciarmos publicamente sobre a apostila, mas ele contribui com esse estigma social de que o médico de família é um médico inferior, que ‘não presta para nenhuma especialidade’. Isso é de uma ignorância incrível”, diz Rodrigo Lima.
“Nesse cenário desfavorável, nas faculdades os alunos que se aproximam da área geralmente são os que se incomodam mais com a questão da igualdade, algo que costuma ser associado à esquerda. Mas isso também não é regra, conheço muitos médicos de família que são de direita”. afirma.
Até a publicação desta reportagem, o Medgrupo, que produz as apostilas do Medcurso, não havia respondido ao pedido de resposta da BBC Brasil.
A medicina de família e comunidade é uma especialidade pouco divulgada até hoje. Eu não tinha nenhum professor que fosse médico de família. Quando entrei na faculdade a reforma curricular já tinha acontecido, mas pouquíssimos professores aderiram. Alguns até se recusaram a dar aulas. Eles diziam que não concordavam com a ideia de “formar médico para trabalhar no posto”.
Dentro da faculdade de Medicina a gente percebia o quanto a profissão tinha status. Muitos colegas meus se espelhavam nesses professores, que eram reconhecidos como médicos especialistas.
Eu tinha um professor de anatomia que era neurocirurgião e dizia em sala de aula que tínhamos que aprender para não nos tornarmos “médicos de posto de saúde”. Trabalhar em posto de saúde é visto como coisa de gente que não quis estudar para fazer uma residência mais concorrida.
Acho que há preconceito, sim. No Brasil, esta é a especialidade que trabalha com a periferia. Não há um médico de família famoso. É uma especialidade que não paga tão bem como as outras pagam.
Dentro da sociedade e das famílias, a medicina de família e comunidade não é vista como algo que dê status para o médico.
Quando eu disse a minha família que optei por essa especialidade foi difícil para eles entenderem.
Eles diziam que eu não ia ganhar dinheiro e que eu ficaria desempregado, porque ainda achavam que era só um programa de governo e poderia acabar.
Percebo hoje que os alunos de medicina têm um maior interesse pela especialidade, mas não por causa do estímulo dos professores. Apenas pelo aumento da prática na faculdade.
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