Golpe à moda do século XXI


Estudo acadêmico de constitucionalista Pedro Serrano mostra as novas formas de conspirar contra a democracia em nossa época. Mesmo sem fazer nenhuma referência direta ao Brasil, é fácil entender do que ele está falando

Paulo Moreira Leite - 17/05/2015

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Encontrei as palavras acima no mais recente trabalho acadêmico do advogado Pedro Serrano.

de Direito Constitucional na PUC-SP, na semana passada Serrano foi a Portugal apresentar uma tese de pós-doutorado na Universidade de Lisboa. Num trabalho em profundidade sobre direitos e garantias individuais, Serrano debate a Idade Média, explica a queda do absolutismo e a revolução francesa para discutir noções sobre Estado de Direito, Estado Policial e Estado de Exceção. O texto debate os golpes de Estado recentes na América Latina, como a queda de Eduardo Lugo, no Paraguai, e a de Manoel Zelada, em Honduras.

Embora seja um crítico frequente de determinadas sentenças e decisões da Justiça, na AP 470 e também na Operação Lava Jato, em sua tese acadêmica o professor evita maiores considerações a respeito. Não faz referências explícitas a situação brasileira, ainda que o Brasil seja, obviamente, o sujeito mais ou menos oculto de seu trabalho.

Mais do que entrar num debate de assuntos da conjuntura imediata, Serrano procura fixar conceitos — o que também é uma forma de contribuir para a compreensão do momento que o país atravesssa, como você poderá comprovar nos parágrafos finais deste artigo.

Ao estabelecer a conexão entre os direitos individuais e os Estados Democráticos de Direito, Serrano constrói um método que mostra que os regimes de exceção começam a ser formados quando se constrói um inimigo interno, categoria social que define os cidadãos que não têm os mesmos direitos que os outros — e podem ser tratados por medidas de exceção. A construção do inimigo é essencial pois a partir dela é possível estabelecer diferenças “no interior da espécie humana. Onde há o inimigo, não há o ser humano, mas um ser desprovido da condição de humanidade,” explica, recordando o universo político em que se moveu o nazismo de Adolf Hitler, o fascismo de Benito Mussolini e também a ditadura militar que governou o Brasil por duas décadas. De uma forma ou outra , esclarece, eram regimes que possuíam cidadãos desprovidos dos mesmos direitos que os demais — como judeus, comunistas, estrangeiros — e a partir daí se construiu uma ordem que envolvia o conjunto da sociedade.

Explicando o nascimento das ditaduras, o professor lembra que “em geral a decisão jurisdicional de exceção não se declara como tal”. Pelo contrário, costuma justificar-se como um esforço para defender o próprio Estado democrático de Direito e é “envolvida em fundamentações e justificativas compatíveis com a ordem posta. ” Foi assim que a suspensão de garantias democráticas sob o regime de Hitler foi apresentada como uma resposta ao incêndio do Reichstag, o Parlamento alemão, atribuído ao Partido Comunista. Da mesma forma, o fantasma do comunismo nos anos de Guerra-Fria serviu de suporte ideológico ao ciclo militar da América Latina, inclusive o Brasil.

Depois de analisar as ditaduras do século XX, onde havia um “Estado autoritário claro, um Estado de polícia inequívoco, um poder exercido de forma bruta,” Pedro Serrano entra no século XXI, o nosso período histórico.

A NOVA NATUREZA DO ESTADO DE EXCEÇÃO

De saída, o professor registra uma mudança clara e importante: “o Estado de exceção muda de natureza. Não há mais a interrupção do Estado democrático para a instauração de um Estado de exceção, mas os mecanismos do autoritarismo típico passam a existir e conviver dentro da rotina democrática.

Assim, naquele que costuma ser considerado o mais antigo Estado Democrático de Direito do planeta, os Estados Unidos, na primeira década do século XXI nasceu o Patriotic Act. No ambiente de grande emoção e pânico produzidos pelos ataques de 11 de setembro, um decreto assinado por George W Bush “autoriza a prática de atos de tortura como método de investigação (…) bem como o sequestro de qualquer ser humano suspeito de inimigo em qualquer lugar do planeta, sem qualquer respeito a soberania dos Estados do mundo.” Os mesmos métodos se espalham, em grau maior ou menor, pelos países europeus, “com cadastros especiais de controle da intimidade, campos de confinamento, etc.”

Aquele conjunto de medidas que em outros momentos provocariam a indignação da consciência democrática , passam a ser vistas “como uma verdadeira técnica de governo.”

Assim — o exemplo aqui é meu — um jornalista como Julian Assange permanece há três anos como prisioneiro na embaixada do Equador em Londres. Isso porque divulgou segredos diplomáticos através do Wikileaks, num tratamento sem paralelo com o recebido por Daniel Ellsberg em 1971, na divulgação de documentos secretos e comprometedores do Pentágono sobre a guerra do Vietnã.

Serrano avalia que na América Latina, a era dos golpes militares e ditaduras de longa duração, com desfile de tanques pelas ruas e Congressos fechados será substituída por intervenções rápidas para garantir a derrubada de um governo considerado indesejável — ainda que “regime democráticos sejam inconstitucionalmente interrompidos, golpeando presidentes legitimamente eleitos.” Analisando os dois casos concretos deste período, a deposição de Fernando Lugo e o golpe contra Manoel Zelaya, Serrano sustenta que o Judiciário desempenha um papel essencial para a construção da nova ordem.

Em vez de assumir uma postura de resistência em nome da antiga ordem, postura que, no passado, levou até à cassação de magistrados comprometidos com os princípios democráticos, os tribunais superiores assumem outra função — dar legitimidade a medidas que atropelam a soberania popular. Escreve Serrano: “é a jurisdição funcionando como fonte de exceção e não do direito.”
Outra novidade no século XXI é o inimigo interno, indispensável para iniciativas anti-democráticas. Serrano aponta que, nos países desenvolvidos, esse lugar é ocupado pelo “inimigo muçulmano fundamentalista.”

Muitos analistas sustentam que essa situação é obra do 11 de setembro, o que seria uma forma de dizer que, na origem, o terrorismo de organizações árabes é responsável pela discriminação e violência que as potências do Ocidente reservam a seus povos.
Mantendo-se no terreno jurídico, Serrano não entra nesta discussão, o que dá a este humilde blogueiro o direito de apresentar um palpite.

Sem querer minimizar nem por um segundo o impacto terrível do ataque às torres gêmeas, acho possível defender outro argumento. Acredito que o 11 de setembro colocou em movimento forças que já se moviam na potência norte-americana e provocou reações de uma engrenagem que iria se mover de uma forma ou de outra, para defender os interesses maiores daquele país que se transformou na única potência militar do planeta após o colapso da antiga URSS.

Em 1993, oito anos antes dos ataques, um professor de Harvard, Samuel Huntington, influente nos meios políticos e diplomáticos dos EUA, publicou Choque de Civilizações, artigo que se tornaria uma espécie de programa de trabalho do Império norte-americano e seus aliados na nova ordem mundial. No texto Huntington formula uma visão da evolução humana para as décadas seguintes. Diz que dali para a frente “o eixo predominante da política mundial serão as relações entre ‘o Ocidente e o Resto.” Num raciocínio voltado para a preservação da hegemonia e poderio, Huntington registra a emergência dos países que décadas depois seriam chamados de emergentes — e define estratégias para manter uma posição de força e domínio. Vale a pena ler: “os conflitos entre as civilizacões vão suplantar os conflitos de natureza ideológica e e outras como forma de global dominante; as relações internacionais, um jogo historicamente jogado dentro da civilização ocidental, se tornarão um jogo em que as civilizações não-ocidentais serão agentes e não simples objetos.” Na visão de Huntington, estamos falando de conflitos mais graves e intransponíveis do que a ideologia e a economia, porque sua base está na cultura, em valores inconciliáveis que opõem povos e nações através do planeta inteiro.

Transportada para o direito internacional — não custa lembrar que a ONU foi fundada por uma Carta de Direitos Humanos, frequentemente ignorada na vida real — essa política do inimigo chegará não só a guerras de grande porte, como a do Iraque. Também levou a formulação do chamado Eixo do Mal, que justificava a persistência do bloqueio a Cuba e o apoio a duas tentativas de golpe na Venezuela de Hugo Chávez, em 2002. Com a possibilidade da vitória de Luiz Inácio Lula da Silva na eleição presidencial daquele ano, a diplomacia republicana chegou a cogitar a inclusão do Brasil no conjunto de inimigos a abater, mas essa política foi desmontada por uma ação múltipla, que incluiu o governo Fernando Henrique Cardoso, o próprio Lula e ainda uma viagem bem sucedida de José Dirceu para conversas em Washington e Nova York, meses antes da vitória.

Falando da América Latina e do Brasil, Serrano diagnostica uma situação de duplicidade. Explica que na região convivem um Estado de Democrático de Direito, acessível a população mais endinheirada dos grandes centros urbanos, com um Estado policial de exceção, “localizado nas periferias das grandes cidades, verdadeiros territórios ocupados, onde vive a maioria da população pobre.” Desse ponto de vista, explica, a exceção é a regra geral para a maioria das pessoas.

Referindo-se ao universo que deu origem ao golpe de 1964 no Brasil, o professor explica que ,”o inimigo a ser combatido e que ameaça a sociedade não se identifica mais do a figura do comunista das ditaduras militares, mas sim com a figura do bandido, impreterivelmente identificado com a condição social de pobreza. ”

Impossível discordar.

SOFISMA SOCIÓLOGICO

Eu gostaria de acrescentar, por minha conta, observações sobre as ideias de Serrano e o Brasil de 2015.

Há uma novidade curiosa no comportamento do Judiciário na última década. Estamos falando de um período no qual, como demonstram estatísticas que ninguém discute, os mais pobres conseguiram melhorar — parcialmente, é verdade — sua posição na pirâmide social e ter acesso a um padrão de consumo e igualdade que nunca se viu na história. Estudam mais, alimentam-se melhor, tem oportunidades mais amplas.

Justamente os políticos e personalidades ligados ao Partido dos Trabalhadores e seus aliados, o mais identificado com esse processo, benéfico para o conjunto da sociedade brasileira, têm sido alvo de medidas – classifique como quiser, de exceção, perseguição, ou qualquer outro adjetivo — por parte do Judiciário. Acusados de corrupção em processos espetaculares, acompanhados com espírito de circo pelos grandes grupos de comunicação, passaram a ser discriminados em seus direitos e garantias.

Através da AP 470 e da Operação Lava Jato, são tratados como inimigos internos, habitantes daquilo que Serrano chama de “territórios ocupados da periferia” e não como cidadão que, em função de sua posição na pirâmide social, teriam acesso assegurado ao Estado Democrático de Direito.

Sempre que se debate — por exemplo — as prisões preventivas dos acusados da Lava Jato, em prazos extremamente longos, sem provas nem indícios consistentes de culpa, configurando um abuso destinado a forçar confissões e delações premiadas, os aliados do juiz Sérgio Moro e do Ministério Público pedem ajuda a um sofisma sociológico.

Alegam que um terço do meio milhão de condenados que habitam nosso sistema prisional, habitado em sua imensa maioria por cidadãos pobres, em maior parte pretos, incapazes de contar com bons advogados, também enfrentam a mesma situação, padecem das mesmas dificuldades, quem sabe até piores.

A sugestão de que uma coisa poderia justificar a outra não faz sentido, quando se recorda que o esforço civilizado consiste em estimular a ampliação do Direito, e não seu rebaixamento através de medidas de exceção, que apenas perpetuam um estado geral de coisas.

O que se procura, aqui, é construir um inimigo interno — personagem indispensável das medidas de exceção de que fala Pedro Serrano.

O que se vê é um tratamento discriminatório — com motivação política — tão brutal e dirigido que atravessa as distinções de classe social, sempre profundas e persistentes no Brasil. A grande lição dos julgamento da AP 470 e a Operação Lava Jato é mostrar que não basta ter dinheiro — quem sabe muito dinheiro — para pagar bons advogados e garantir um acesso ao Estado Democrático de Direito, aquele onde vigora o princípio segundo o qual todos são inocentes até que se prove o contrário. Talvez não baste ser filiado ao partido que há 12 anos ocupa a presidência da República, dispondo de privilégios e prerrogativas correspondentes.

É preciso estar do lado certo da disputa política.

Os mesmos executivos e empresários, acusados dos mesmos crimes definidos na AP 470 e também no mensalão PSDB-MG, foram julgados por tribunais diferentes, com direitos diferentes, obtendo penas diferentes. Basta recordar que os primeiros condenados da AP 470 começam a deixar a prisão, depois de cumprir penas definidas pela Justiça. Os outros sequer receberam uma condenação. Quando isso acontecer, aqueles que não tiveram a pena prescrita terão direito a um segundo julgamento, com outros juízes, outro tribunal.

Está demonstrado que os mesmos empresários que, conforme as investigação da Lava Jato, abasteceram os cofres do PT entregaram as mesmas quantias, no mesmo período, para tesoureiros do PSDB. Está provado, registrado na Justiça Eleitoral. O principal delator, aliás, entregou R$ 2 milhões a mais para a campanha de Aécio Neves. Nada disso foi suficiente para o lançamento de uma eventual fase zero da novela Lava Jato, agora mais plural, sem culpados nem inocentes previamente escolhidos, certo?

Alguém convive em paz com a noção de que o dinheiro que chega para os tucanos como “contribuição eleitoral” se transforma em “propina” quando se destina ao PT?

A leitura dos estudos de Hannah Arendt sobre o nascimento de regimes totalitários demonstra que um dos instrumentos básicos empregados na disputa entre parcelas da elite dirigente de determinada sociedade — um aspecto inevitável de toda luta política desde sempre — consistia em mobilizar e estimular preconceitos e ressentimentos da “ralé”. Como tantos observadores sociais de seu tempo, Arendt se referia nestes termos àquela parcela da população que se encontrava abaixo das classes sociais tradicionais, sem acesso a educação, ao bem-estar e que mal conseguia exercitar os próprios direitos políticos. Ela avaliava que a democracia se encontrava em perigo quando a elite assumia modos e comportamentos antidemocráticos e agia de turba, como manada, estimulando gestos violentos e atos de barbárie.

Não é difícil reconhecer movimentos dessa natureza no Brasil de hoje. Os brasileiros assistem isso quando Alexandre Padilha é impedido de jantar em paz com amigos num restaurante no Itaim Bibi — cena que repete um tratamento semelhante oferecido a Guido Mantega quando foi fazer uma visita a um paciente no hospital Albert Einstein. Em 2012, Ricardo Lewandovski, hoje presidente do STF, ouviu comentários ofensivos quando foi à zona eleitoral exercer o direito de voto. São atos que formam um conjunto, contestam a noção de que homens e mulheres pertencem a uma mesma família humana, com direitos a igualdade e a justiça, como diz Pedro Serrano.

É um comportamento lamentável e preocupante. Mas é difícil negar que o exemplo vem de cima, certo?
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