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08/12/2012
Para os Que não Sabem do Que Eles são Capazes
Do Blog DoLaDoDeLa - 07 dezembro 2012
Frei Tito
Fui levado
do presídio Tiradentes para a "Operação Bandeirantes", OB (Polícia do
Exército), no dia 17 de fevereiro de 1970, 3ª feira, às 14 horas. O
capitão Maurício veio buscar-me em companhia de dois policiais e disse:
"Você agora vai conhecer a sucursal do inferno". Algemaram minhas mãos,
jogaram me no porta-malas da perua. No caminho as torturas tiveram
início: cutiladas na cabeça e no pescoço, apontavam-me seus revólveres.
Preso desde novembro de 1969, eu já
havia sido torturado no DOPS. Em dezembro, tive minha prisão preventiva
decretada pela 2ª auditoria de guerra da 2ª região militar. Fiquei sob
responsabilidade do juiz auditor dr. Nelson Guimarães. Soube
posteriormente que este juiz autorizara minha ida para a OB sob
“garantias de integridade física”.
Ao chegar à OB fui conduzido à sala
de interrogatórios. A equipe do capitão Maurício passou a acarear-me com
duas pessoas. O assunto era o Congresso da UNE em Ibiúna, em outubro de
1968. Queriam que eu esclarecesse fatos ocorridos naquela época. Apesar
de declarar nada saber, insistiam para que eu “confessasse”. Pouco
depois levaram me para o “pau-de-arara”. Dependurado nu, com mãos e pés
amarrados, recebi choques elétricos, de pilha seca, nos tendões dos pés e
na cabeça. Eram seis os torturadores, comandados pelo capitão Maurício.
Davam-me "telefones" (tapas nos ouvidos) e berravam impropérios. Isto
durou cerca de uma hora. Descansei quinze minutos ao ser retirado do
"pau-de-arara". O interrogatório reiniciou. As mesmas perguntas, sob
cutiladas e ameaças. Quanto mais eu negava mais fortes as pancadas. A
tortura, alternada de perguntas, prosseguiu até às 20 horas. Ao sair da
sala, tinha o corpo marcado de hematomas, o rosto inchado, a cabeça
pesada e dolorida. Um soldado, carregou-me até a cela 3, onde fiquei
sozinho. Era uma cela de 3 x 2,5 m, cheia de pulgas e baratas. Terrível
mau cheiro, sem colchão e cobertor. Dormi de barriga vazia sobre o
cimento frio e sujo.
Na quarta-feira fui acordado às 8 h.
Subi para a sala de interrogatórios onde a equipe do capitão Homero
esperava-me. Repetiram as mesmas perguntas do dia anterior. A cada
resposta negativa, eu recebia cutiladas na cabeça, nos braços e no
peito. Nesse ritmo prosseguiram até o início da noite, quando serviram a
primeira refeição naquelas 48 horas: arroz, feijão e um pedaço de
carne. Um preso, na cela ao lado da minha, ofereceu-me copo, água e
cobertor. Fui dormir com a advertência do capitão Homero de que no dia
seguinte enfrentaria a “equipe da pesada”.
Na quinta-feira três policiais
acordaram-me à mesma hora do dia anterior. De estômago vazio, fui para a
sala de interrogatórios. Um capitão cercado por sua equipe, voltou às
mesmas perguntas. "Vai ter que falar senão só sai morto daqui", gritou.
Logo depois vi que isto não era apenas uma ameaça, era quase uma
certeza. Sentaram-me na "cadeira do dragão" (com chapas metálicas e
fios), descarregaram choques nas mãos, nos pés, nos ouvidos e na cabeça.
Dois fios foram amarrados em minhas mãos e um na orelha esquerda. A
cada descarga, eu estremecia todo, como se o organismo fosse se
decompor. Da sessão de choques passaram-me ao "pau-de-arara". Mais
choques, pauladas no peito e nas pernas a cada vez que elas se curvavam
para aliviar a dor. Uma hora depois, com o corpo todo ferido e
sangrando, desmaiei. Fui desamarrado e reanimado. Conduziram-me a outra
sala dizendo que passariam a carga elétrica para 230 volts a fim de que
eu falasse "antes de morrer". Não chegaram a fazê-lo. Voltaram às
perguntas, batiam em minhas mãos com palmatória. As mãos ficaram roxas e
inchadas, a ponto de não ser possível fechá-las. Novas pauladas. Era
impossível saber qual parte do corpo doía mais; tudo parecia massacrado.
Mesmo que quisesse, não poderia responder às perguntas: o raciocínio
não se ordenava mais, restava apenas o desejo de perder novamente os
sentidos. Isto durou até às 10 h quando chegou o capitão Albernaz.
"Nosso assunto agora é especial",
disse o capitão Albernaz, ligou os fios em meus membros. "Quando venho
para a OB - disse - deixo o coração em casa. Tenho verdadeiro pavor a
padre e para matar terrorista nada me impede... Guerra é guerra, ou se
mata ou se morre. Você deve conhecer fulano e sicrano (citou os nomes de
dois presos políticos que foram barbaramente torturados por ele), darei
a você o mesmo tratamento que dei a eles: choques o dia todo. Todo
"não" que você disser, maior a descarga elétrica que vai receber". Eram
três militares na sala. Um deles gritou: "Quero nomes e aparelhos
(endereços de pessoas)". Quando respondi: "não sei" recebi uma descarga
elétrica tão forte, diretamente ligada à tomada, que houve um
descontrole em minhas funções fisiológicas. O capitão Albernaz queria
que eu dissesse onde estava o Frei Ratton. Como não soubesse, levei
choques durante quarenta minutos.
Queria os nomes de outros padres de
São Paulo, Rio e Belo Horizonte "metidos na subversão". Partiu para a
ofensa moral: "Quais os padres que têm amantes? Por que a Igreja não
expulsou vocês? Quem são os outros padres terroristas?". Declarou que o
interrogatório dos dominicanos feito pelo DEOPS tinha sido "a toque de
caixa" e que todos os religiosos presos iriam à OB prestar novos
depoimentos. Receberiam também o mesmo "tratamento". Disse que a "Igreja
é corrupta, pratica agiotagem, o Vaticano é dono das maiores empresas
do mundo". Diante de minhas negativas, aplicavam-me choques, davam-me
socos, pontapés e pauladas nas costas. À certa altura, o capitão
Albernaz mandou que eu abrisse a boca "para receber a hóstia sagrada".
Introduziu um fio elétrico. Fiquei com a boca toda inchada, sem poder
falar direito. Gritaram difamações contra a Igreja, berraram que os
padres são homossexuais porque não se casam. Às 14 horas encerraram a
sessão. Carregado, voltei à cela onde fiquei estirado no chão.
Às 18 horas serviram jantar, mas não
consegui comer. Minha boca era uma ferida só. Pouco depois levaram-me
para uma "explicação". Encontrei a mesma equipe do capitão Albernaz.
Voltaram às mesmas perguntas. Repetiram as difamações. Disse que, em
vista de minha resistência à tortura, concluíram que eu era um
guerrilheiro e devia estar escondendo minha participação em assaltos a
bancos. O "interrogatório" reiniciou para que eu confessasse os
assaltos: choques, pontapés nos órgãos genitais e no estomago
palmatórias, pontas de cigarro no meu corpo. Durante cinco horas apanhei
como um cachorro. No fim, fizeram-me passar pelo "corredor polonês".
Avisaram que aquilo era a estréia do que iria ocorrer com os outros
dominicanos. Quiseram me deixar dependurado toda a noite no
"pau-de-arara". Mas o capitão Albernaz objetou: "não é preciso, vamos
ficar com ele aqui mais dias. Se não falar, será quebrado por dentro,
pois sabemos fazer as coisas sem deixar marcas visíveis". "Se
sobreviver, jamais esquecerá o preço de sua valentia".
Na cela eu não conseguia dormir. A
dor crescia a cada momento. Sentia a cabeça dez vezes maior do que o
corpo. Angustiava-me a possibilidade de os outros padres sofrerem o
mesmo. Era preciso pôr um fim àquilo. Sentia que não iria aguentar mais o
sofrimento prolongado. Só havia uma solução: matar-me.
Na cela cheia de lixo, encontrei uma
lata vazia. Comecei a amolar sua ponta no cimento. O preso ao lado
pressentiu minha decisão e pediu que eu me acalmasse. Havia sofrido mais
do que eu (teve os testículos esmagados) e não chegara ao desespero.
Mas no meu caso, tratava-se de impedir que outros viessem a ser
torturados e de denunciar à opinião pública e à Igreja o que se passa
nos cárceres brasileiros. Só com o sacrifício de minha vida isto seria
possível, pensei. Como havia um Novo Testamento na cela, li a Paixão
segundo São Mateus. O Pai havia exigido o sacrifício do Filho como prova
de amor aos homens. Desmaiei envolto em dor e febre.
Na sexta-feira fui acordado por um
policial. Havia ao meu lado um novo preso: um rapaz português que
chorava pelas torturas sofridas durante a madrugada. O policial
advertiu-me: "o senhor tem hoje e amanhã para decidir falar. Senão a
turma da pesada repete o mesmo pau. Já perderam a paciência e estão
dispostos a matá-lo aos pouquinhos". Voltei aos meus pensamentos da
noite anterior. Nos pulsos, eu havia marcado o lugar dos cortes.
Continuei amolando a lata. Ao meio-dia tiraram-me para fazer a barba.
Disseram que eu iria para a penitenciária. Raspei mal a barba, voltei à
cela. Passou um soldado. Pedi que me emprestasse a "gillete" para
terminar a barba. O português dormia. Tomei a gillete. Enfiei-a com
força na dobra interna do cotovelo, no braço esquerdo. O corte fundo
atingiu a artéria. O jato de sangue manchou o chão da cela. Aproximei-me
da privada, apertei o braço para que o sangue jorrasse mais depressa.
Mais tarde recobrei os sentidos num leito do pronto-socorro do Hospital
das Clínicas. No mesmo dia transferiram-me para um leito do Hospital
Militar. O Exército temia a repercussão, não avisaram a ninguém do que
ocorrera comigo. No corredor do Hospital Militar, o capitão Maurício
dizia desesperado aos médicos: "Doutor, ele não pode morrer de jeito
nenhum. Temos que fazer tudo, senão estamos perdidos". No meu quarto a
OB deixou seis soldados de guarda.
No sábado teve início a tortura
psicológica. Diziam: "A situação agora vai piorar para você, que é um
padre suicida e terrorista. A Igreja vai expulsá-lo". Não deixavam que
eu repousasse. Falavam o tempo todo, jogavam, contavam-me estranhas
histórias. Percebi logo que, a fim de fugirem à responsabilidade de meu
ato e o justificarem, queriam que eu enlouquecesse.
Na segunda noite recebi a visita do
juiz auditor acompanhado de um padre do Convento e um bispo auxiliar de
São Paulo. Haviam sido avisados pelos presos políticos do presídio
Tiradentes. Um médico do hospital examinou-me à frente deles mostrando
os hematomas e cicatrizes, os pontos recebidos no hospital das Clínicas e
as marcas de tortura. O juiz declarou que aquilo era "uma estupidez" e
que iria apurar responsabilidades. Pedi a ele garantias de vida e que eu
não voltaria à OB, o que prometeu.
De fato fui bem tratado pelos
militares do Hospital Militar, exceto os da OB que montavam guarda em
meu quarto. As irmãs vicentinas deram-me toda a assistência necessária
Mas não se cumpriu a promessa do juiz. Na sexta-feira, dia 27, fui
levado de manhã para a OB. Fiquei numa cela até o fim da tarde sem
comer. Sentia-me tonto e fraco, pois havia perdido muito sangue e os
ferimentos começavam a cicatrizar-se. À noite entregaram-me de volta ao
Presídio Tiradentes.
É preciso dizer que o que ocorreu
comigo não é exceção, é regra. Raros os presos políticos brasileiros que
não sofreram torturas. Muitos, como Schael Schneiber e Virgílio Gomes
da Silva, morreram na sala de torturas. Outros ficaram surdos, estéreis
ou com outros defeitos físicos. A esperança desses presos coloca-se na
Igreja, única instituição brasileira fora do controle estatal-militar.
Sua missão é: defender e promover a dignidade humana. Onde houver um
homem sofrendo, é o Mestre que sofre. É hora de nossos bispos dizerem um
BASTA às torturas e injustiças promovidas pelo regime, antes que seja
tarde.
A Igreja não pode omitir-se. As
provas das torturas trazemos no corpo. Se a Igreja não se manifestar
contra essa situação, quem o fará? Ou seria necessário que eu morresse
para que alguma atitude fosse tomada? Num momento como este o silêncio é
omissão. Se falar é um risco, é muito mais um testemunho. A Igreja
existe como sinal e sacramento da justiça de Deus no mundo
"Não queremos, irmãos, que ignoreis a
tribulação que nos sobreveio. Fomos maltratados desmedidamente, além
das nossas forças, a ponto de termos perdido a esperança de sairmos com
vida. Sentíamos dentro de nós mesmos a sentença de morte: deu-se isso
para que saibamos pôr a nossa confiança, não em nós, mas em Deus, que
ressuscita os mortos" (2Cor, 8-9).
Faço esta denúncia e este apelo a fim de que se evite amanhã a triste notícia de mais um morto pelas torturas.
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