Quando falta uma semana para o primeiro turno, Luciana
Genro não disse de que lado está numa eleição que não tem chance de
vencer
Luciana Genro certamente vai deixar a campanha presidencial de 2014 como uma das revelações do primeiro turno.
A candidata do PSOL calou o discurso de mudanças de Eduardo Jorge,
ontem, ao lembrar sua participação, subordinada, em governos
conservadores, a começar pelo PSDB de José Serra, em São Paulo,
explicando que vivemos numa sociedade dividida em classes, na qual é
preciso escolher um lado.
No debate no SBT, Luciana Genro discutiu política econômica para
fazer uma pergunta curta e direta para Marina Silva: “Tu és a segunda
via do PSDB?” Diante da firmeza evasiva que tem pontuado as respostas da
candidata do PSB, Luciana Genro acrescentou: “Não dá, Marina. Tem que
escolher um lado.” Desta vez, foi ainda mais clara: lembrou que existe
“o lado do capital e o lado dos trabalhadores.” No debate promovido pela
Igreja Católica, Luciana desvendou a hipocrisia do discurso moralista
de Aécio Neves.
Na reta final da campanha, os candidatos estão escolhendo seus lados,
até Levy Fidélix que ontem se definiu como centro-dirieita.
Mas resta uma pergunta:
— De que lado tu tá, Luciana Genro?, perguntou, pelo twitter, a
deputada Maria do Rosário, que foi ministra dos Direitos Humanos.
A experiência de homens e mulheres ensina que o engajamento político
não consiste numa declaração verbal — mas envolve compromissos
políticos, dentro de cada situação concreta de perspectiva de poder.
A história não se faz por atos de vontade mas dentro de condições
dadas, como ensinam estudiosos aplicados e brilhantes. É um produto da
experiência das classes sociais, que forjam projetos e definem seus
líderes.
No Brasil de 2014, nem é preciso ler os jornais para saber onde se
encontra “o lado do Capital e o lado dos trabalhadores,” para empregar a
definição que Luciana. Basta consultar o Manchetômetro.
A prioridade para o “lado do capital”, em 2014, é derrotar o acordo
progressista que assumiu o governo brasileiro em 2003 e, ao longo de
três mandatos consecutivos, acumulou uma série de mudanças — inegáveis —
em benefício dos trabalhadores e da população pobre. Falando do
essencial:
* O Brasil conseguiu sair do mapa da fome da ONU, 68 anos depois que o
médico Josué de Castro escreveu a obra Geografia da Fome. Isso
aconteceu depois que Lula transformou a fome em questão de Estado. Um
número resume a prioridade. Em 2002, final do governo FHC, os gastos
sociais do governo federal chegavam a R$ 1804 per capita. Em 2011, sem
que o governo tivesse alterado um centavo na carga tributária deixada
pelo PSDB — ao contrário do que afirma a turma do impostômetro —
chegavam a R$ 3444, uma elevação superiour a 80% (1).
* Em dezembro de 2002, final do governo Fernando Henrique, uma cesta
básica consumia 68% do salário mínimo. Hoje, consome 47,7%. Apesar do
crescimento baixo em 2014 a economia gera empregos. Foram acumulados 3
milhões de novos postos de trabalho no governo Dilma e em junho de 2014
projetava-se a criação de mais 563 000. A média de desemprego no Brasil,
entre 2008 e 2013, é de 6,3% — a mesma da Alemanha no mesmo período. A
da Espanha é de 22%, da França, 10%, da Italia 9,5% e da Grécia 18,2%. A
proporção de empregos formais dobrou entre 1994 e 2012.
* É gracioso dizer que Lula-Dilma têm a mesma política econômica do
que o PSDB e Marina Silva para favorecer os bancos. Mas é falso. Nos
oito anos do governo Fernando Henrique, a média da taxa de juros foi de
26,6%. No governo Lula, caiu para 14,8%. No governo Dilma, é de 9,4%. A
insistência em nivelar todos os governos no mesmo patamar só beneficia
quem precisa esconder o que fez, certo? (Grifos em verde negritado são do ContrapontoPIG)
* Oferendo oportunidades nunca abertas para os brasileiros negros,
excluídos entre os excluídos, o programa Pro-Uni assegurava 1 milhão de
matrículas em universidades, em 2012. Se em 2002 apenas 140
estabelecimentos ofereciam educação profissional tecnologica, em 2014
esse número chegava a 562.
Esses dados formam um conjunto que mostra que a partir de 2003 o país
teve um governo capaz de dar início a um conjunto de mudanças
favoráveis a maioria dos brasileiros.
Um grande número de eleitores já percebeu isso, como demonstra a
liderança de Dilma Rousseff nas pesquisas. Apesar do massacre absurdo
que sua candidatura tem sofrido cotidianamente, uma parcela crescente de
brasileiros dá sinal de que pretende resistir e defender o que
conquistou de 2003 para cá.
Este é o sentido da eleição. O lado. E é nesta situação, diante de alternativas reais de poder, que é possível fazer opções.
Com argumentos muito semelhantes àqueles que Luciana Genro
emprega
hoje, em 1950 o Partido Comunista Brasileiro (PCB) fez campanha contra
Getúlio Vargas. Pregou voto branco, com o argumento de que Vargas
representava o imperialismo norte-americano. Por mais absurdo que isso
possa parecer nos dias de hoje, era coerente com a lógica da Guerra
Fria. Quem não era aliado incondicional de uma das superportência era
considerado como inimigo, e o nacionalista Getúlio se encaixava nesta
categoria tanto emWashington como em Moscou.
Nessa perspectiva, sob liderança de Luiz Carlos Prestes, o PCB se
engajou numa oposição radical a Vargas e não perdia uma oportunidade
para hostilizar o governo, assumindo o papel da sigla esquerdista que
faz o jogo conveniente a direita.
Não enxergou conquistas importantes — como aumento do salário mínimo
congelado após cinco anos, a criação da Petrobras. Na crise de 1954,
seus jornais pediam a renuncia do presidente — e, depois do tiro no
peito, foram atacados e empastelados por uma multidão indignada. Imagine
o jornal dos comunistas atacado pelos operários. Pois foi isso o que
aconteceu.
Eu era correspondente em Washington, em 2000, quando assisti a
campanha pela sucessão de Bill Clinton. Não há comparação possível entre
os universos políticos dos dois países, até porque não há equivalente
ao Partido dos Trabalhadores nos Estados Unidos.
Mas a eleição daquele ano guarda lições úteis para o Brasil de 2014.
Havia dois concorrentes na disputa. George W. Bush, o republicano que
deixou a Casa Branca como o pior presidente desde a Independência, em
1776, e o vice Al Gore, o democrata que parecia uma versão mais bem
comportada e centrada do que o antecessor. Al Gore foi derrotado no
tapetão da Suprema Corte, que suspedeu a recontagem de votos na Florida,
medida que equivalia a dar posse a George W Bush.
O que ninguém gosta de lembrar é que havia um terceiro candidato na
campanha, um advogado chamado Ralph Nader. Inventor do movimento de
defesa do consumidor, quando levou executivos da industria
automobilística para os tribunais, nos anos 1960, Nader tornara-se uma
personalidade conhecida, simpática e respeitável. Candidato pelo Partido
Verde, falar com ele era uma delícia, como pude comprovar em várias
entrevistas curtas durante a campanha. Nader denunciava os bancos e as
grandes empresas, falava da industria bélica sem receio, empregando uma
tonalidade radical que jamais seria ouvida mesmo entre a ala mais
esquerda do Partido Democrata, com ligações com o movimento sindical
muito mais profundas do que eu imaginava antes de morar nos EUA. Contava
com apoio entre universitários e intelectuais, inclusive Noham Chomsky.
Nós sabemos como foi a campanha norte-americana de 2000. Al Gore
venceu no voto popular por meio milhão de votos. Mas era uma disputa
apertada, num sistema indireto em que os partidos precisam ganhar a
eleição em cada Estado para fazer maioria no Colégio Eleitoral que tem a
última palavra na escolha do presidente. Foi aí que o voto em Ralph
Nader teve um papel importante — para a vitória de Bush.
Com um discurso à esquerda de Al Gore ele conseguiu receber 2,8
milhões de votos no país inteiro. Se Nader também atraiu eleitores que
teriam votado em Bush como segunda opção, não havia dúvida que a
preferência por Al Gore era mais acentuada entre seus aliados,numa
proporção de 38% contra 25%, conforme uma pesquisa feita no dia da
eleição. Ninguém pode imaginar quantos votos Nader tomou de Al Gore
naquele pleito, impedindo que fizesse um número maior de delegados aqui
ou ali.
Mas todo mundo sabe que na contagem final, a disputa
concentrou-se na Flórida, de ali o estrago foi grande. Aceitando como
verdadeiros os números oficiais, divulgados após uma longa batalha nas
apurações, medidas judiciais de um lado e de outro, afirma-se que Bush
ganhou por uma diferença de miseráveis 537 votos. Mas a apuração mostrou
que Ralph Nader ficara com 97.421 votos na Florida — um oceano
eleitoral que teria assegurado a Al Gore os votos de que necessitava
para vencer.
O que veio a seguir todos se recordam. Bush reorientou o Estado
americano para um conservadorismo puro e duro, abandonando qualquer
concessão de natureza moderada deixada por Clinton. Depois do 11 de
setembro, iniciou a invasão do Afeganistão e a Guerra do Iraque,
terminando por gerar uma bolha financeira-militar que ajudou a cavar o
túmulo da grande crise de 2008.
Claro que Ralph Nader não tem a menor responsabilidades pelas medidas
estúpidas de George W Bush. Não era o presidente nem estava no comando.
Mas sua responsabilidade na vitória ruinosa de George W Bush não foi
esquecida pelos eleitores.
Quatro anos depois, quando voltou a disputar a eleição, ocorreu uma
debandada geral. Seus 2,8 milhões de votos haviam se reduzido a 465 000.
Em nova tentativa, quando Barack Obama foi eleito pela primeira vez,
cresceram só um pouquinho. Mas equivaliam a quinta parte daquilo que ele
recebera na campanha de 2000. Sua carreira presidencial extinguiu-se.
É importante escolher seu lado, como afirma Luciana Genro em 2014.
(1) A fonte da maioria dos dados deste texto é o levantamento “Vinte
Anos de Economia Brasileira — 1994-2014,” de Gerson Gomes e Carlos
Antônio Silva da Cruz