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03/09/2014
O verdadeiro sentido do Banco Central independente de Marina
Enviado por Renato Souza qua, 03/09/2014 - 09:21 Atualizado em 03/09/2014 - 09:22
Por Renato Santos de Souza
A “nova política” da Marina Silva é, na verdade, tão velha quanto Adam Smith.
Está lá, no seu Programa de Governo!
Nem eu acreditava nisto, pensei que seria mais um destes programas cheios de boas intenções e de valores nobres, mas vazio de opções e de propostas, ou então cheio de propostas feitas para um outro mundo que não o nosso, como sugere a ideologia da Rede.
Mas não, o Programa da candidata deixou claro que ela é a mais nova versão do neoliberalismo monetarista: submissão dos governos aos interesses do mercado financeiro, associado à "metáfora" da sustentabilidade para travar investimentos produtivos brasileiros, favorecendo os interesses estrangeiros de quem quer ocupar o nosso mercado e ocupar mercados sobre os quais o Brasil tem avançado. (Grifos em verde negritado são do ContrapontoPIG)
Melhor para os bancos e para os interesses estrangeiros.
O exemplo mais simbólico desta ideologia conservadora é a tal "independência do Banco Central", a mais nova pregação da presidenciável.
"Entendemos que era preciso dar um sinal forte, dizendo que a autonomia de fato, que agora estava sendo desacreditada, precisava agora ser institucionalizada" disse ela recentemente, sobre a proposta que consta no seu Plano de Governo.
Mas o que é isto, que no discurso fica tão bonito e dá até uma certa autoridade técnica para a candidata: independência do Banco Central? E o que ela realmente representa?
Bem, vai aqui uma rápida explicação, rememorando os meus tempos de professor de economia, para aqueles que ainda flutuam sobre o tema sem conhecê-lo por dentro.
A política econômica, da qual dependem os níveis de produção, de crescimento econômico e de emprego de um país, e também os investimentos públicos, tem três grandes componentes:
- Política Fiscal, que trata das receitas e gastos do Governo, e afeta o nível dos impostos e os investimentos governamentais;
- Política Cambial, que trata da taxa de câmbio e afeta as importações, exportações, as despesas no exterior e as de estrangeiros no Brasil;
- E a Política Monetária, que regula a taxa de juros e a quantidade de moeda na economia.
Pois bem, o Banco Central opera sobretudo a Política Monetária e, no regime de câmbio flutuante, também a Cambial, mas com reflexo forte sobre a Política Fiscal. Quando o Banco Central é totalmente independente, o Governo praticamente só tem a Política Fiscal para operar a política econômica. Isto representa, para o candidato que defende esta posição, quase como abrir mão de governar, ou reduzir o governante a um alocador dos recursos escassos dos impostos.
A independência do Banco Central sempre foi um libelo dos economistas mais liberais, chamados formalmente nas escolas de economia de Monetaristas. E por que Monetaristas? Por que eles acreditam que o principal dever da política econômica é controlar a inflação, e inflação é um fenômeno monetário e não produtivo (daí o nome Monetarista); então, para eles, inflação se controla com aumento na taxa de juros e redução da quantidade de moeda na economia.
Na prática, para os Monetaristas, inflação se combate com recessão.
E ponto final! A isto se reduziria a política econômica, pois os liberais defendem a não intervenção do governo na economia. O resto seria apenas o controle dos gastos públicos, para que o déficit público e seus mecanismos de financiamento não pressionem a inflação.
Então, a política econômica dos monetaristas implica nos governos não fazerem política econômica, ou não usarem a política econômica para administrar a economia. É para isto que o Banco Central precisa ser independente na ideologia Monetarista, porque para que este possa ficar cuidando apenas da “saúde da moeda”, precisa retirar dos governos a capacidade de fazer política econômica, que segundo eles, poderia causar inflação.
Mas de fato, Marina tem razão, o Banco Central nunca foi completamente independente dos governos, afinal, o seu presidente é cargo de confiança da Presidência da República. Enquanto isto acontecer, toda a independência será apenas retórica. Porém, ela diz que esta independência, agora, “precisa ser institucionalizada”, e isto pode significar tirá-lo da alçada da Presidência.
Que risco!
Vejam bem, independência do Banco Central, assim, não significa apenas que ele seja independente do Governo, mas que o Governo será dependente dele, o Banco Central, e de quem o controlar (provavelmente os bancos privados e os grandes investidores financeiros).
E porquê? Porque as três políticas descritas acima são interdependentes, mas um Banco Central independente terá protagonismo sobre duas delas, Monetária e Cambial, que afetam diretamente a Política Fiscal. O Governo e sua Política Fiscal é que serão dependentes do Banco Central, invertendo os princípios democráticos e atentando contra a soberania do voto. No limite, vai ser mais relevante eleger o Presidente do Banco Central que o da República.
Por exemplo, se o Banco Central decide aumentar em 1% a taxa de juros, isto significa, atualmente, um aumento de cerca de R$ 20 bilhões anuais de gasto para rolar a dívida pública; 10% de aumento, R$ 200 bilhões a mais de gasto. Quem paga é o Tesouro; e onde vai parar o dinheiro? No bolso dos banqueiros e dos especuladores financeiros, que detém os títulos da dívida pública brasileira.
O aumento da taxa de juros significa, também, menos investimentos, menos consumo e, consequentemente, menos arrecadação. Então as decisões do Banco Central afetam as duas pontas da Política Fiscal, a receita e os gastos.
Como no caso da independência completa do Banco Central só resta ao Governo administrar a Política Fiscal, e como um aumento da taxa de juros levaria à redução da arrecadação e aumento de gastos com a dívida pública, a única ação governamental possível é o corte profundo de despesas e investimentos, com reflexos inexoráveis sobre os serviços públicos e sobre os investimentos na infraestrutura que o país tanto precisa.
Para quem acha esta política improvável, lembrem dos Monetaristas: para eles, esta é uma política muito razoável. Na era FHC, em que a política econômica era dominada por este mesmo perfil de economistas (alguns dos quais estão agora na equipe da Marina), a taxa de juros Selic chegou a 45% em 1997, e na maior parte do tempo dos seus dois mandatos flutuou acima de 20% ao ano.
As consequências naquela época nós conhecemos bem, arrocho salarial, contingenciamento permanente de recursos, represamento de vagas no serviço público, investimento zero, e tudo mais que fosse necessário cortar para sobrar dinheiro para pagar elevados juros aos bancos. Eu trago lembranças vivas e amargas deste período. Na Universidade federal onde trabalho não havia dinheiro nem para comprar giz, e vagas ficavam por anos contingenciadas, criando um déficit quase insuportável de pessoal; na estrada em que eu viajava todo o mês entre Santa Maria e Pelotas, no RS (uma das mais importantes do estado, pois escoa boa parte da safra gaúcha para o Porto de Rio Grande), o problema não eram os buracos, pois havia grandes trechos, entre 20 e 30 km, em que simplesmente já não havia mais a camada asfáltica. Buracos no asfalto até seriam um privilégio!
Este era o cenário na época, e quem viveu aquele período certamente lembra disto.
Este quadro mudou a olhos nus quando o Governo já do Presidente Lula passou a reduzir fortemente os juros, que chegaram a 8,65% ao ano ainda no seu período, e a 7,12% no Governo Dilma (hoje está em torno de 10% ao ano, taxa ainda alta para os padrões internacionais).
Desta redução da taxa de juros é que saíram boa parte dos recursos para os investimentos que, também a olhos nus, nós vemos hoje no Brasil. Esta redução também permitiu-nos enfrentar as crises financeiras internacionais desde 2008, com estímulos à produção e ao consumo como forma de evitar a retração da economia. Na era dos Monetaristas do FHC, ao contrário, as crises internacionais eram enfrentadas com elevações vertiginosas na taxa de juros, para evitar a “fuga de capitais” e a deterioração do câmbio. O pico de 45% em 1997 foi numa destas crises.
Mas estas são decisões de Governo, não podem ser decisões de um Banco Central Independente, que sequer nós elegeremos. Banco Central independente é uma proposta de governo que serve para a “não política” econômica, típica dos Monetaristas, para quem os governos devem apenas administrar os gastos públicos mantendo o equilíbrio fiscal, e o Banco Central deve cuidar da inflação e do câmbio. E a isto se resumiria a política econômica.
Ou seja, a independência do Banco Central significa o Governo abrir mão de fazer a política econômica, e se tornar, de vez, refém do Banco Central e do mercado financeiro.
E eu não tenho dúvidas, nós pagaremos esta opção política com juros altos e recessão, redução dos investimentos públicos e privados e precarização dos serviços públicos.
Então, sobretudo aqueles que se iludem com a aparente novidade e pureza de valores da Marina, esqueçam as tais escolas e hospitais padrão FIFA, esqueçam os investimentos em estradas, aeroportos, portos, mobilidade urbana e energia que tanto precisamos, esqueçam as bolsas para intercâmbio no exterior, esqueçam o crédito fácil e barato para a casa própria e para a compra do carro. Esqueçam... A receita Monetarista que Marina propõe adotar é amarga e seletiva, e não prevê este tipo de Estado presente na vida do cidadão.
Mas isto não é tudo, o principal exemplo de Banco Central independente, para os Monetaristas, é o Federal Reserve Bank, dos EUA, onde o economista Alan Greenspan permaneceu como Presidente por quase 20 anos, passando por governos de republicanos e democratas. Porém, o suposto Banco Central independente dos EUA não foi capaz de prevenir nem de mitigar a monumental crise financeira porque passaram (e ainda passam) os americanos a partir de 2008, que começou no sistema financeiro americano, se espalhou para o resto da economia e depois para a Europa e resto do mundo. Quem pagou a conta foram os cidadãos e o Governo, lembram! Na verdade, ainda estão pagando.
Os germes da crise foram exatamente os controles frágeis do Banco Central americano sobre o mercado financeiro decorrentes do privilégio à especulação financeira (com a exacerbação dos famigerados “derivativos”) como mecanismo fundamental do mercado de capitais, atendendo aos interesses dos bancos e dos grandes rentistas.
Isto que os EUA são os “donos” da moeda das transações e das reservas internacionais da maioria dos países, o dólar. Ou seja, a sua política monetária tem um poder mundo afora que a nossa jamais sonharia, e mesmo assim o seu Banco Central apresentou esta incapacidade de prevenir e controlar a crise de 2008.
Quem tem um pouco de memória lembra-se, também, que na opinião da maioria dos analistas, o Brasil passou quase incólume por aquela crise, dentre outras coisas, porque o nosso Banco Central tinha bons mecanismos de controle e o sistema financeiro brasileiro era relativamente robusto.
Pontos para o nosso Banco Central, que por ser mais independente que o de lá do mercado financeiro, dos bancos e dos grandes especuladores, pode atender aos interesses dos governos, de suas políticas e do seu povo.
Então, nós temos que nos perguntar: com este histórico de resiliência em relação às crises econômicas recentes, e de controle relativamente eficaz da inflação, quem precisa de um Banco Central independente no Brasil atualmente? A quem interessa esta proposta? Bem, se ele puder ficar livre do Governo e dos controles democráticos para aplicar a receita Monetarista, eu acho que sei quem precisa: os rentistas do mercado financeiro, que serão os únicos beneficiados por uma política de juros altos.
Então, não se iluda, o Banco Central independente da Marina só será independente do Governo, mas não do mercado financeiro. Portanto, ele não é garantia de segurança econômica alguma. Ao contrário, a “nova política” da Marina é promessa de retorno da “velha política econômica” do Governo FHC, que na esteira da montanha russa financeira provocada pelas políticas monetaristas da época, sucateou os serviços públicos e estagnou o Brasil por oito anos, sob o pretexto de controlar a inflação.
Renato Santos de Souza - UFSM/RS
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