sábado, 5 de dezembro de 2015

Contraponto 18.334 - "Sem nada contra Dilma, direita aposta em truques"


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05/12/2015 

 

Sem nada contra Dilma, direita aposta em truques





Marcelo Camargo/Agência Brasil: <p>Brasília - A presidenta Dilma Rousseff participa da 15ª Conferência Nacional de Saúde, no Centro de Convenções Ulysses Guimarães (Marcelo Camargo/Agência Brasil)</p>

Paulo Moreira Leite

Num país que em 1992 afastou um presidente da República por acusações  de corrupção – que mesmo assim foram rejeitadas pelo Supremo – é instrutivo lembrar que a oposição passou o último ano em movimentos de tentativa e erro para tentar encontrar um motivo para afastar Dilma Rousseff do Planalto e nada encontrou.

Em dificuldade para apontar um único ato criminoso contra a presidente – e é sintomático que nada tenha surgido após a gigantesca devassa realizada em vários anos de Lava jato – políticos da oposição, técnicos e ministros do Tribunal de Contas da União acumularam fantasias contábeis e fiascos jurídicos na esperança de criminalizar decisões legítimas de todo governo, cotidianamente  desafiado a fazer opções e definir prioridades de caráter político.

Nos últimos meses, as hipóteses mais conhecidas foram descartadas. Não se fala mais de programas sociais que seriam sustentados por métodos irregulares de causavam prejuízos ao Tesouro. Está demonstrado que, pelo contrário, a conta suprimento mantida pelo Tesouro na  Caixa Econômica, instituição repassadora de recursos, gerou saldo positivo para os contribuintes, que ultrapassou R$ 100 milhões por ano em várias ocasiões.

A denúncia de irregularidades envolvendo empréstimos do BNDES a empresas privadas não se tornou uma questão criminal, como se pretendia, para se tornar aquilo que sempre foi – uma disputa de caráter acadêmico e político sobre o papel de um banco público  como indutor do desenvolvimento.

Por falta de nexo, a tese de que em 2015 Dilma deveria ser investigada sobre  supostos crimes ocorridas no primeiro mandato – ideia que contraria definição explícita da Constituição –  acabou condenada pela maioria dos juristas do país. 

Restaram os 6 decretos presidenciais que formam a base da denúncia que Eduardo Cunha resolveu acolher no momento em que decidiu dar curso ao processo de impeachment na esperança de salvar o próprio pescoço pelo tumulto. Num debate cujo ponto de partida envolve defesa da ética e da  legalidade na vida pública, não se pode deixar de apontar determinadas questões relevantes.

A denúncia se baseia em conclusões do Tribunal de Contas da União, instituição que, apesar do nome, não tem autoridade para julgar, inocentar ou condenar quem quer que seja. É um órgão auxiliar do Congresso, que pode aceitar, rejeitar ou simplesmente ignorar suas conclusões, como acontece com frequência. Isso quer dizer que, sem aval da maioria dos parlamentares,  uma denúncia do TCU pode ser -- e é -- um ótimo instrumento de propaganda política mas seu valor legal é nulo.

Os questionamentos que alimentam a denúncia acolhida por Eduardo Cunha  foram produzidos pelo "Ministério Público do TCU", instituição que é correto designar assim, entre aspas, pois sua existência não é reconhecida pela Constituição brasileira. (A Carta de 1988 fala em MP Federal, dos Estados, do Meio Ambiente, Militar -- e nada de TCU).

As acusações contra a presidente têm a assinatura do relator, Augusto Nardes. Ex-deputado, como a maioria dos colegas de plenário que usam togas, Nardes é investigado pelo Supremo Tribunal Federal, por envolvimento num esquema de corrupção na Receita, apurado na Operação Zelotes. Ele sempre negou acusação. É suspeito de ter sido a autoridade -- identificada nos arquivos do esquema como "ministro"-- que teria embolsado R$ 2,6 milhões como propina em função de um generoso desconto numa multa a ser paga pelo grupo de comunicação RBS, do Rio Grande do Sul, seu estado natal.

Num processo que tem um ministro investigado pela Zelotes numa das pontas, e um deputado apanhado pelo Ministério Publico da Suíça na outra, apenas num ambiente de comédia pastelão pode-se admitir a tentativa de criminalizar meia dúzia de decretos assinados por Dilma Rousseff, contra quem não há um fiapo de suspeita.  

Estamos falando de decretos não numerados, categoria prevista pela administração federal desde 1991, em uso por todos os governantes desde então. Como era de se imaginar, a falta de identificação numérica chegou a ser usada para levantar suspeitas de caráter primário num comentarista entrevistado pela TV Globo (a linha de raciocínio foi "se não há número é porque estão escondendo alguma coisa").

A leitura do site do Palácio do Planalto (http://www4.planalto.gov.br/legislacao/legislacao-1/decretos-nao-numerados1#content)  mostra que os decretos não apenas são perfeitamente legais, mas tem uso frequente na administração. Está lá, em bom português:  
"Editados pelo Presidente da República, possuem objeto concreto, específico e sem caráter normativo. Os temas mais comuns são a abertura de créditos, a declaração de utilidade pública para fins de desapropriação, a concessão de serviços públicos e a criação de grupos de trabalho."

Se você clicar em 1993, governo Itamar Franco, irá encontrar mais de 100 decretos não numerados apenas no dia 30 de dezembro daquele ano. Normal. É nessa época que as administrações,  no mundo inteiro,  procura fazer acertos contábeis no fechamento do ano. Se clicar em 1997, Fernando Henrique, irá encontrar 18 decretos não numerados em 13 de dezembro. Se for para o 15 de maio de 2007, irá encontrar cinco decretos no governo Luiz Inácio Lula da Silva. E assim por diante, até chegar a 2015, com Dilma. (Só nos primeiros três meses do ano, a presidente assinou 40 decretos  não-numerados, documento que costuma ser examinados previamente por uma dezena de subalternos antes de chegar a seu gabinete).

Num ambiente de confusão que não contribui para um debate onde a serenidade é inimiga de projetos políticos obscuros, é difícil entender qual o questionamento possível aos 6 decretos. Em nenhum caso se aponta -- nem se insinua -- qualquer fato criminoso, o que só contribui para acentuar o caráter exótico da situação.    

Em entrevista ao Globo, o procurador Julio Marcelo de Oliveira, do TCU, responsável pela acusação, diz: "o que eu acho é que a irregularidade existiu." Olha a palavra. Chega a ser risível quando se associa uma "irregularidade" que o procurador acha que existiu a um esforço para derrubar uma presidente eleita por mais de 54 milhões de votos. É  um caso infinitamente mais grave, que só pode avançar pela demonstração de crime de responsabilidade.  

Mas o termo "irregularidade", aqui, não é uma palavra solta, nem casual. Questionado pelo repórter Vinícius Sassine, o procurador diminui ainda mais o teor da acusação.  Fala em  "hipótese de violação de leis orçamentárias." (O Globo, 4/12/015).  É isso: o impeachment da hipótese.  

Apesar disso, Julio Marcelo de Oliveira acredita que o Congresso deve discutir "se a presidente deve ser afastada por isso," num processo que leva em conta "a conjuntura nacional e o futuro do país." Entendeu, né.   

Em minha opinião, a modéstia absoluta, hipotética, dos fatos que podem ser apontados contra a presidente ajuda a entender o esforço para debater o assunto em clima de tumulto.

Até  agora não se apontou -- tecnicamente -- uma irregularidade nos decretos não numerados. Todos envolvem operações "de crédito, e têm "objeto concreto, específico, sem caráter normativo."

Uma das teses favoritas contra os decretos envolve a afirmação de que o governo autorizou gastos extras sem ouvir o Congresso. Seria grave – desde que fosse verdade.

Em 2015, o governo cortou gastos, no maior contingenciamento da história do país, justamente para evitar um déficit nas contas. Foram R$ 50 bilhões, que ajudam a explicar o fundo do poço em que a economia se encontra, meses mais tarde.

O problema é que os decretos não numerados não criaram despesas novas -- que aí sim deveriam ser aprovadas pelo Legislativo -- mas promoveram alterações internas na distribuição de receitas. Gastos que originalmente eram encaminhados para determinada área de um ministério, foram deslocados para outra mas não mudaram nem poderiam mudar de pasta.

Não foram gastos novos que fizeram o déficit subir. Foi a queda na receita.

Estes recursos deslocados é que tem sido  chamados de "gastos extras." Está errado. Mesmo receitas próprias, obtidas em promoções e atividades que não têm relação com o orçamento, são mantidas sob controle. Não são "extras."

Por exemplo. Uma  faculdade pública, que recebe um reforço com a realização de vestibulares ou curso fora do currículo obrigatório pode usar os recursos obtidos dessa forma -- mas não pode gastar mais do que foi autorizada anteriormente.

Ao contrário do que se costuma sugerir, o orçamento federal do Estado brasileiro está submetido a um controle fiscal extremamente rigoroso, muito menos flexível do que em outros países, inclusive Estados Unidos. O pressuposto do Estado norte-americano é as despesas sempre serão maiores do que as receitas. O debate politicamente relevante, ali, envolve o limite de endividamento.

A noção de que as contas brasileiras são manipuladas numa gastança tropical faz parte do discurso que alimenta o Estado mínimo, mas a experiência mostra outra situação. Os controles não têm base na vida real e podem envolver amarras artificiais, como o próprio governo Fernando Henrique sentiu na pele.  Inaugurada com pompa e circunstância como parte do atrelamento do pais às regras do Consenso de Washington, a Lei de Responsabilidade Fiscal não resistiu a três meses de existência para gerar um déficit que só pode ser coberto por um truque orçamentário -- a inclusão dos saldos das estatais na conta final de gastos e receitas, operação que evitou que o país ficasse no vermelho já no primeiro ano da nova legislação.

Essa situação real, incompatível com a lenda que se quer apresentar, explica a dificuldade para se responder a pergunta que importa. Esquece o crime, que está na cara que não houve. Qual foi o erro?
Ninguém sabe.

Essa dificuldade, política, explica o uso de um truque de linguagem. É a origem do termo "pedalada fiscal". Fala-se de uma prática que não pode ser enquadrada administrativamente, muito menos juridicamente.  Mas pode ser usada politicamente -- desde que se crie um ambiente favorável ao engano e à manipulação.

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