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06/06/2016
O xadrez da manipulação dos fatos e das leis
A base de toda sociedade democrática é a informação. Sobre a base
da informação, formam-se os conceitos. Dos conceitos nascem os pactos.
Os pactos se consolidam em leis. Das leis, derivam os contratos. É esse
ciclo que garante a convivência civilizada de opostos, as eleições, a
alternância de poder e a construção da democracia, impedindo abusos,
selvageria.
Essa é a expressão final do termo segurança jurídica.
Hoje em dia, vive-se um estado de exceção no país, porque esta
cadeia foi corrompida. A corrupção de informações e conceitos tornou-se
tão ampla e disseminada, que criou-se um novo normal jurídico, onde a
exceção tornou-se regra.
Ponto de partida - a era dos factoides soltos
A primeira trinca no sistema de informações ocorreu com o pacto
entre os grupos de mídia, proposto por Roberto Civita, da Editora Abril,
inspirando-se no australiano-americano Rupert Murdock.
Os princípios do pacto eram a formação do cartel e, sem
contraditório, a disseminação de todo tipo de factoide, de notícias
falsas, por mais inverossímeis que fossem, acreditando no poder
sempiterno da repetição.
Ali encerrou-se um ciclo de mídia em que houve relativa competição
entre os veículos, relativo respeito à informação, relativo acatamento
das teses legitimadoras, impedindo a disseminação de notícias falsas.
Sem o apoio de uma fonte diária de fatos, o modelo era alimentado
pela parceria com organizações criminosas, como a de Carlinhos
Cachoeira, com a indústria de dossiês associada, que emerge com o caso
Lunus de José Serra e que torna-se elemento central da disputa política
brasileira.
As eleições de 2006 e 2010 marcaram o coroamento dessa
excrescência. A busca de factoides a qualquer preço gerou as peças
símbolos do período: a escandalização da tapioca comprada com um cartão
corporativo pelo Ministro dos Esportes Orlando Silva. Ou a denúncia de
que um servidor da Casa Civil havia comprado os serviços de vinte
bailarinas – e bailarina era um tipo de vaso ornamental para flores.
Segundo passo - o julgamento do mensalão.
Com o mensalão, o sistema ganha musculatura, porque o julgamento passou a garantir um fluxo continuado de fatos com viés claro.
o deveu-se à tática de competir com a
geração de fatos da CPMI de Carlinhos Cachoeira – que expunha as
parcerias da mídia com organizações criminosas.
Em pouco tempo o fato AP 470 se sobrepôs ao fato CPMI de Cachoeira.
E a mídia descobriu a eficácia da parceria com o sistema judicial,
explorando episódios que garantissem um fluxo diário de fatos.
Ali houve a primeira contaminação, a primeira quebra grave no
sistema judicial, fundando-se em uma notícia falsa como peça central de
um julgamento relevante.
Esqueça-se o petismo e o antipetismo, as polêmicas em torno de José
Dirceu, a malandragem pouco sutil de Pizolatto, e concentre-se no fato:
todo o julgamento baseou-se em uma informação falsa: o desvio de R$ 75
milhões da Visanet. Os próprios funcionários do Banco do Brasil - que
detestavam Pizolatto - asseguraram que jamais ocorreu o tal desvio.
Posteriormente, a Lava Jato escancarou o gigantesco processo de propinas da Petrobras. Mas a AP 470 se baseou em uma mentira.
A informação falsa foi a peça central da acusação, aventada pelo
Procurador Geral Antônio Fernando de Souza, endossada pelo grupo de
procuradores que trabalhou no processo e acatada pelo ex-procurador
Ministro Joaquim Barbosa e pelo pleno do Supremo.
Como foi possível um fato de tal gravidade ter sobrevivido à tantos
filtros? E como foi possível deixar de lado o laudo da Polícia Federal
sustentando que a maior parte dos recursos de Marcos Valério foi bancado
pelo grupo Opportuniy, do banqueiro Daniel Dantas?
Ali ficou claro que a Corte Maior havia se rendido às paixões
políticas. E as análises colegiadas não serviam de filtro às narrativas
do Procurador Geral. Pouco depois de deixar a PGR, aliás, Antônio
Fernando assumiu um escritório de advocacia que conquistou um
mega-contrato da Brasil Telecom, de Dantas.
Dali em diante, todo o sistema de informações do país entrou em
curto-circuito. Mídia, partidos políticos, agentes do Estado, juízes
passaram a tratar o fato de forma utilitária, adaptando-o às suas
preferências partidárias, adulterando-o se necessário através do recurso
da manipulação de ênfases e de interpretações.
Antes, à falta de fluxo constante de notícias, os grupos de mídia
esfalfavam-se em factoides sem nenhuma verossimilhança. Com o julgamento
do mensalão, descobriu-se o que os golpistas de 1954 sabiam: a base de
toda ação desestabilizadora consiste em um evento, com geração diária de
fatos e com o controle das versões pelos grupos hegemônicos de mídia.
Foi assim na CPI da Última Hora, com Vargas. Foi assim na AP 470.
Terceiro passo - A campanha negativa a partir de 2012.
Valeram-se desde as falsas ênfases (enfatizar o fato negativo
irrelevante para ocultar o positivo relevante) até as falsificações de
notícias. No dia da inauguração da arena do Corinthians, a manchete de
um jornal foi sobre a falta de sabonete nas pias do banheiro.
Ora, nos Estados Unidos houve o fenômeno mãe, o caso FoxNews, de
Murdock. Mas as instituições dispunham de anticorpos, seja no jornalismo
referencial de outros veículos, como o New York Times, seja no próprio
processo de formação de opinião do Parlamento e do Judiciário. No Brasil
todos os grandes veículos embarcaram no mesmo jogo do antijornalismo.
O grande problema foi quando o desvirtuamento das informações
atingiu o sistema jurídico. Não apenas os fatos, mas os conceitos
passaram a ser deturpados. E a parcialidade da Justiça abriu sua
bocarra, através de Gilmar Mendes.
Quarto passo - o fator Gilmar Mendes.
Nenhum outro personagem foi tão daninho à ordem jurídica e ao
sistema de informações quanto Gilmar Mendes. No início, meio sutil,
depois escancarando sua parcialidade, mostrou seguidamente à opinião
pública que a lei, ora a lei, é apenas um instrumento para legitimar a
vontade do julgador. Vai perder uma votação? Basta pedir vista por tempo
indeterminado. É "inimigo"? O peso da condenação. É "aliado"? A defesa
por todos os meios, jurídicos e jornalísticos. O mesmo garantista que
interrompeu a Satiagraha se tornou o mais iracundo acusador em operações
contra “inimigos”.
A parcialidade criou uma pedagogia negativa, para o público uma
demonstração da parcialidade do julgador, abrindo campo para que outros
operadores da lei - juiz, procurador ou delegado -- passassem a exercer
o subjetivismo em favor de suas preferências pessoais.
Quinto passo - a Lava Jato
Chega-se, finalmente, ao ápice desse modelo na Lava Jato, com o uso
disseminado dos vazamentos, praticados em inquéritos sob sigilo em
Curitiba, na Procuradoria Geral da República e no Supremo Tribunal
Federal, devidamente amarrados com a agenda do impeachment.
Nesse momentos, instaura-se o novo normal. Não interessam as
coletas de provas, indícios, evidências: vale a versão publicada. Não
interessa o processo jurídico: vale o julgamento midiático. Todos os
vazamentos têm objetivos políticos claros e exibição de músculos por
parte de seus autores. E abandona-se definitivamente a presunção da
isenção para perseguições políticas ostensivas.
Sexto passo – a campanha do impeachment
A campanha do impeachment é mera consequência dos passos
anteriores. E se tornou a comprovação mais acabada do desvirtuamento de
fatos e de conceitos.
Agora não são mais procuradores e delegados transformados em
editores de jornais, nem deputados paleolíticos com seus gritos guturais
e seus rituais selvagens. São também juristas, Ministros do STF,
ex-presidente que aderem ao jogo, ou se eximindo ou assumindo de público
a constitucionalidade do golpe, em um momento em que todos os fatos são
transmitidos em tempo real para o mundo. Por seis decretos de
remanejamento de despesas, jogam-se no lixo 54 milhões de votos e
assumem interinos, sem mandato popular, comportando-se como
conquistadores espanhóis empenhados em destruir a civilização anterior.
É nesse momento que o processo de desconstrução dos fatos, de livre
criação de narrativas, ainda que inverossímeis, definem a nova cara
institucional do país, o novo normal, trazendo de volta o fantasma da
insegurança jurídica.
A reação instintiva das ruas
E aí ocorre um fenômeno interessantíssimo.
Em que pese todo fogo de barragem dos grupos de mídia, todo o poder
de disseminação de versões, de boatos, de factoides, a narrativa do
impeachment constitucional não pegou.
Agora, nas ruas, não estão mais as massas tangidas por um
sentimento difuso de descontentamento com a crise política, com a falta
de perspectivas e com os erros da presidente.
Os manifestantes não são meramente petistas, movimentos sociais,
mas também grupos dos mais distintos, segmentos dos mais diversos que
entenderam, seja pelos debates na Internet, seja por intuição, a
importância da legalidade, do cumprimento das leis, da Constituição, os
riscos de retrocesso, muito mais do que a erudição sem consequências de
Ministros do Supremo, a exibição de músculos do Procurador Geral, o
sebastianismo de procuradores evangélicos e a truculência de delegados
barras-pesadas, todos armados até os dentes com instrumentos de poder de
Estado.
É essa a grande batalha nacional, onde Dilma ou Temer se tornaram
símbolos, muito mais do que protagonistas. Fora do poder, Dilma ganhou
uma dimensão simbólica que jamais teve antes em seus tempos de
presidente, nem quando gozava de índices elevados de popularidade, muito
menos quando atropelou as esperanças populares, após as eleições de
2014.
A batalha do impeachment tornou-se definitivamente a luta da
civilização contra a barbárie, dos fatos contra as manipulações, da
democracia, ainda que imperfeita, contra o assalto ao poder.
E, dessa avalanche, surge finalmente o melhor do Brasil: a moçada
que descobriu a nova política, não mais atrelada a partidos, mas a
bandeiras.
O Brasil moderno está em plena efervescência. Não sei se a ponto de
derrubar o castelo de manipulações erigido nos últimos anos, mas
certamente para confrontar o atraso em um ponto qualquer do futuro.
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