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15/07/2013
O Rubicão brasileiro
Da Carta Maior - 13/07/2013
Saul Leblon
A luta pelo desenvolvimento está coalhada de
relatos em que à ‘fase alegre dos consensos’ sucede-se um interregno
de clivagem turbulenta.
A transição, não raro, engole nações inteiras no abismo de um golpe desfechado por interesses contrariados no processo; ou submete esperanças de gerações à espiral dos impasses que se realimentam até a sociedade clamar por ‘ordem’.
Em artigo publicado nesta página, o filósofo Slavoj Zizek disparou comentário que parece conter um recado ao Rubicão brasileiro.
‘O mais difícil é ir além de Mandela, sem se tornar Mugabe’, disse em menção ao autocrata que controla o Zimbábue há 30 anos.
Carta Maior tem a convicção de que para ir além de Mandela, sem cair refém de um Mugabe, a saída é a radicalização da democracia.
Há um defeito de origem no DNA do processo político dos últimos anos.
Se quisermos recorrer a um recorte simbólico, podemos recuperar o momento em que, sob o cerco conservador e boicote de prefeitos, o governo renunciou aos comitês gestores do Fome Zero, em 2003.
Teria sobrevivido sem esse recuo divisor, que formataria o modelo de todas as demais iniciativas?
A encruzilhada das correlações de forças obriga a admitir: provavelmente não.
O programa, reformado, mostrou-se um dos maiores acertos políticos e sociais do ciclo de governo em curso.
Mas vencida a face alegre dos consensos, hoje se vê que a sustentação de um projeto progressista não pode prescindir do discernimento organizado das forças por ele beneficiadas.
É ilusório achar que uma política progressista gera espontaneamente sua própria base de apoio.
Pode dar essa impressão na fase alegre dos consensos.
Mas não se confirma quando o conflito convoca escolhas difíceis.
O espontaneísmo das multidões é episódico; quase sempre sequestrável pelos algozes de suas causas.
Errou o atual governo ao persistir nesse que foi, desde sempre, o flanco mais delicado do ciclo iniciado em 2003 : a ausência de canais efetivos de participação popular nas decisões de Estado.
A que se reduziram as promissoras conferencias nacionais da cidadania, por exemplo?
De meramente consultivas, regrediram ao anonimato, sob o peso da irrelevância .
A renúncia aos comitês gestores do Fome Zero pode ter sido uma imposição do momento histórico.
Mas teria agido certo o governo ao não adequar a premissa original, consagrando outra instância participativa menos arestosa?
Por exemplo: uma conferencia anual das mulheres do Bolsa Família, engajando-as na agenda do desenvolvimento.
O cenário em curso sugere que não fazê-lo foi um erro.
Não se evoca a Comuna de Paris.
Mas, sim, agregar um salto de consciência histórica à correlação de forças, capacitando a cidadania para lidar com os gargalos do desenvolvimento.
Boa parte do mal-estar nos dias que correm reflete a inexistência desses requisitos para ordenar o hiato entre as expectativas imensas encorajadas – e experimentadas – nos últimos anos e o passo seguinte represado no dique do dinheiro grosso.
A suposição de que um processo de desenvolvimento se autolegitima ao gerar – como gerou no Brasil — novos protagonistas sociais, esbarra, ademais, na pergunta feita por Mané Garrincha, em 58: ‘Já combinou com os russos?’
O outro lado, ‘os russos’, está em campo, com um jogo francamente ofensivo e a vantagem do calendário mundial.
A espoleta de uma transição de ciclo na economia internacional (recuperação americana/ redução do fluxo de capitais/queda nos preços das matéria primas) adiciona impasses à travessia brasileira atual.
Ela convoca a sociedade a montar o cavalo turbulento das escolhas de futuro, adicionalmente turvadas pela reordenação dos mercados globais.
A escrituração conservadora das opções e de seus custos faz o resto, ao magnificar impasses reais e inventar outros, diante de ruas recheadas de insatisfação e incerteza.
É uma corrida contra o tempo.
Asfixiante crosta elitista incha de dia e se esparrama à noite, recobrindo cada desvão progressista com a ferrugem dos interditos, ecoados sem trégua pela emissão conservadora.
A Casa Grande marmorizada no tecido social convoca trancas e mobiliza cadeados.
Acoita-se qualquer sinal de desvio no pelourinho da inexistente organização política, que poderia garantir ao novo o seu lugar no mundo através da ação.
A exacerbação do corporativismo é típica desses momentos, em que o interesse coletivo se dissipa no autofalante do individualismo influente.
A guilda do jaleco branco vai às ruas, como nunca fora antes, quando a CPMF foi abolida pelos que agora denunciam 'a falta de investimento em infraestrutura de saúde'.
Vai para endossar a lógica que manda às favas a emergência social e qualquer iniciativa capaz de mexer nos alicerces da exclusão.
Rejeita-se a vinda de reforço estrangeiro para suprir vazios emergenciais de atendimento médico: pode atrapalhar a agonia pedagógica de uma pobreza desprovida de infraestrutura hospitalar.
Rechaça-se o programa 'Mais Médicos' como afronta ao direito individual.
Trata-se, na verdade, de uma reformulação do ensino da medicina, incorporando-se as escolas à política de saúde, ao estender a formação em dois anos de serviços prestados --remunerados-- no sistema público de atendimento (SUS).
Ao apoio de 65% da sociedade ao plebiscito – e de 73% à Constituinte –, ambas propostas do governo para romper outra emergência, a tutela do dinheiro grosso sobre a democracia, o senhoril reage igualmente em bloco.
Cabe ao poder existente a tarefa de reformar o poder: o resto é chavismo, borbulha a crosta conservadora sancionada pela toga obsequiosa.
Fato: os governos progressistas dos últimos 12 anos vestiram a camisa do poder existente, adequando-se ao figurino incontornável da busca de uma maioria legislativa – sem a qual não se governa.
O novo negociou permanentemente com o velho poder, dentro das suas regras.
Praticamente, sem estender o braço de ferro às ruas, exceto em períodos eleitorais.
E sem invadir o perímetro da riqueza estabelecida.
Ainda assim, agregando avanços indiscutíveis com a melhor repartição do fluxo corrente.
O conservadorismo jamais aceitou pacificamente esse comodato em que os de fora – por mais comedidos – pudessem determinar como, quanto e onde a riqueza incremental deveria ser alocada.
Se já era assim enquanto a graxa do crescimento lubrificava o atrito, o que esperar agora que ela secou?
O governo parece ter entendido, em parte, o que se espera de agora em diante.
As propostas de plebiscito, a reforma política e o programa ‘Mais Médicos’ carregam o frescor das rupturas capazes de subtrair espaços à ordem reiterativa.
Falta, porém, mais uma vez, a compreensão ativa de que as boas intenções não geram a sua própria legitimidade.
O desafio progressista, hoje, não consiste em competir numericamente com o espontaneísmo das ruas, mas, sim, em dar organicidade política aos que tem mais a perder se a crosta conservadora transformar, aqui, um ciclo ‘Mandela' em espiral ‘Mugabe'.
Transferir essa tarefa para a urna de 2014, e perseguir, até lá, uma estabilidade ortodoxa, sob fogo cerrado do oligopólio midiático, é subestimar demais o poder corrosivo da ferrugem que já toma conta de todo o ambiente político.
A transição, não raro, engole nações inteiras no abismo de um golpe desfechado por interesses contrariados no processo; ou submete esperanças de gerações à espiral dos impasses que se realimentam até a sociedade clamar por ‘ordem’.
Em artigo publicado nesta página, o filósofo Slavoj Zizek disparou comentário que parece conter um recado ao Rubicão brasileiro.
‘O mais difícil é ir além de Mandela, sem se tornar Mugabe’, disse em menção ao autocrata que controla o Zimbábue há 30 anos.
Carta Maior tem a convicção de que para ir além de Mandela, sem cair refém de um Mugabe, a saída é a radicalização da democracia.
Há um defeito de origem no DNA do processo político dos últimos anos.
Se quisermos recorrer a um recorte simbólico, podemos recuperar o momento em que, sob o cerco conservador e boicote de prefeitos, o governo renunciou aos comitês gestores do Fome Zero, em 2003.
Teria sobrevivido sem esse recuo divisor, que formataria o modelo de todas as demais iniciativas?
A encruzilhada das correlações de forças obriga a admitir: provavelmente não.
O programa, reformado, mostrou-se um dos maiores acertos políticos e sociais do ciclo de governo em curso.
Mas vencida a face alegre dos consensos, hoje se vê que a sustentação de um projeto progressista não pode prescindir do discernimento organizado das forças por ele beneficiadas.
É ilusório achar que uma política progressista gera espontaneamente sua própria base de apoio.
Pode dar essa impressão na fase alegre dos consensos.
Mas não se confirma quando o conflito convoca escolhas difíceis.
O espontaneísmo das multidões é episódico; quase sempre sequestrável pelos algozes de suas causas.
Errou o atual governo ao persistir nesse que foi, desde sempre, o flanco mais delicado do ciclo iniciado em 2003 : a ausência de canais efetivos de participação popular nas decisões de Estado.
A que se reduziram as promissoras conferencias nacionais da cidadania, por exemplo?
De meramente consultivas, regrediram ao anonimato, sob o peso da irrelevância .
A renúncia aos comitês gestores do Fome Zero pode ter sido uma imposição do momento histórico.
Mas teria agido certo o governo ao não adequar a premissa original, consagrando outra instância participativa menos arestosa?
Por exemplo: uma conferencia anual das mulheres do Bolsa Família, engajando-as na agenda do desenvolvimento.
O cenário em curso sugere que não fazê-lo foi um erro.
Não se evoca a Comuna de Paris.
Mas, sim, agregar um salto de consciência histórica à correlação de forças, capacitando a cidadania para lidar com os gargalos do desenvolvimento.
Boa parte do mal-estar nos dias que correm reflete a inexistência desses requisitos para ordenar o hiato entre as expectativas imensas encorajadas – e experimentadas – nos últimos anos e o passo seguinte represado no dique do dinheiro grosso.
A suposição de que um processo de desenvolvimento se autolegitima ao gerar – como gerou no Brasil — novos protagonistas sociais, esbarra, ademais, na pergunta feita por Mané Garrincha, em 58: ‘Já combinou com os russos?’
O outro lado, ‘os russos’, está em campo, com um jogo francamente ofensivo e a vantagem do calendário mundial.
A espoleta de uma transição de ciclo na economia internacional (recuperação americana/ redução do fluxo de capitais/queda nos preços das matéria primas) adiciona impasses à travessia brasileira atual.
Ela convoca a sociedade a montar o cavalo turbulento das escolhas de futuro, adicionalmente turvadas pela reordenação dos mercados globais.
A escrituração conservadora das opções e de seus custos faz o resto, ao magnificar impasses reais e inventar outros, diante de ruas recheadas de insatisfação e incerteza.
É uma corrida contra o tempo.
Asfixiante crosta elitista incha de dia e se esparrama à noite, recobrindo cada desvão progressista com a ferrugem dos interditos, ecoados sem trégua pela emissão conservadora.
A Casa Grande marmorizada no tecido social convoca trancas e mobiliza cadeados.
Acoita-se qualquer sinal de desvio no pelourinho da inexistente organização política, que poderia garantir ao novo o seu lugar no mundo através da ação.
A exacerbação do corporativismo é típica desses momentos, em que o interesse coletivo se dissipa no autofalante do individualismo influente.
A guilda do jaleco branco vai às ruas, como nunca fora antes, quando a CPMF foi abolida pelos que agora denunciam 'a falta de investimento em infraestrutura de saúde'.
Vai para endossar a lógica que manda às favas a emergência social e qualquer iniciativa capaz de mexer nos alicerces da exclusão.
Rejeita-se a vinda de reforço estrangeiro para suprir vazios emergenciais de atendimento médico: pode atrapalhar a agonia pedagógica de uma pobreza desprovida de infraestrutura hospitalar.
Rechaça-se o programa 'Mais Médicos' como afronta ao direito individual.
Trata-se, na verdade, de uma reformulação do ensino da medicina, incorporando-se as escolas à política de saúde, ao estender a formação em dois anos de serviços prestados --remunerados-- no sistema público de atendimento (SUS).
Ao apoio de 65% da sociedade ao plebiscito – e de 73% à Constituinte –, ambas propostas do governo para romper outra emergência, a tutela do dinheiro grosso sobre a democracia, o senhoril reage igualmente em bloco.
Cabe ao poder existente a tarefa de reformar o poder: o resto é chavismo, borbulha a crosta conservadora sancionada pela toga obsequiosa.
Fato: os governos progressistas dos últimos 12 anos vestiram a camisa do poder existente, adequando-se ao figurino incontornável da busca de uma maioria legislativa – sem a qual não se governa.
O novo negociou permanentemente com o velho poder, dentro das suas regras.
Praticamente, sem estender o braço de ferro às ruas, exceto em períodos eleitorais.
E sem invadir o perímetro da riqueza estabelecida.
Ainda assim, agregando avanços indiscutíveis com a melhor repartição do fluxo corrente.
O conservadorismo jamais aceitou pacificamente esse comodato em que os de fora – por mais comedidos – pudessem determinar como, quanto e onde a riqueza incremental deveria ser alocada.
Se já era assim enquanto a graxa do crescimento lubrificava o atrito, o que esperar agora que ela secou?
O governo parece ter entendido, em parte, o que se espera de agora em diante.
As propostas de plebiscito, a reforma política e o programa ‘Mais Médicos’ carregam o frescor das rupturas capazes de subtrair espaços à ordem reiterativa.
Falta, porém, mais uma vez, a compreensão ativa de que as boas intenções não geram a sua própria legitimidade.
O desafio progressista, hoje, não consiste em competir numericamente com o espontaneísmo das ruas, mas, sim, em dar organicidade política aos que tem mais a perder se a crosta conservadora transformar, aqui, um ciclo ‘Mandela' em espiral ‘Mugabe'.
Transferir essa tarefa para a urna de 2014, e perseguir, até lá, uma estabilidade ortodoxa, sob fogo cerrado do oligopólio midiático, é subestimar demais o poder corrosivo da ferrugem que já toma conta de todo o ambiente político.
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