09/12/2013
Privilegiados e perseguidos
Da IstoÉ Independente -
No país da novilíngua, direito assegurado em lei é tratado como privilégio
Há muito tempo nós sabemos que o
uso de palavras inadequadas é uma das formas menos inocentes e mais
eficazes de manipulação política.
Permite esconder a realidade, confundir o cidadão comum e estimular reações que não têm apoio nos fatos.
Estudioso aplicado dos regimes
stalinistas, a quem acusava de manipular uma ideologia igualitária
criada pelo pensamento comunista para construir uma ditadura opressiva,
George Orwell criou o termo novilíngua para explicar o fenômeno.
Com isso, explicava, era possível fazer uma coisa – e fingir que se praticava seu oposto.
Cinco décadas depois da morte
de Josef Stalin, velhas técnicas stalinistas de propaganda foram
despidas de sua origem primeira e servem a qualquer causa, a qualquer
ideologia, mesmo a mais conservadora: esconder fatos desagradáveis,
falhas humanas, gestos incoerentes, contradições e mesmo mentiras.
É tudo retórica.
Seu método, no entanto, é o mesmo. Consiste em usar uma questão real
para deformá-la ao sabor de propósitos e conveniências de momento.
No Brasil de 2013 a novilíngua está na primeira página dos jornais.
Empregar o termo
“privilegiados” para se referir aos condenados na ação penal 470 e usar a
expressão “privilégios” para se referir às condições no presídio da
Papuda é prestar um favor desnecessário às autoridades comandadas por
Joaquim Barbosa.
Um exame criterioso dos fatos
mostra que, pelo contrário, desde o início o STF tomou um conjunto de
medidas jurídicas que é adequado classificar como perseguição em vez de
prestação de favor ou benefício indevido.
Já era absurdo falar em
privilégio para cidadãos condenados num julgamento “exemplar” onde foram
aceitas várias medidas excepcionais e nada exemplares. Para quem ainda
fica surpreso quando lê isso, vamos recordar rapidamente. Quem já está
cansado de ouvir os argumentos, pode pular para o final do ítem “F”.
A) Negou-se o
direito a um duplo grau de jurisdição, garantia constitucional reservada
a todo brasileiro que não tem foro privilegiado e assegurado aos
mensaleiros PSDB-MG e também no DEM do Distrito Federal.
B) Na falta de
provas capazes de demonstrar a culpa dos réus além de qualquer dúvida
razoável, aceitou-se uma teoria exótica, do domínio do fato, que não tem
a mais remota ligação com o caso em questão.
C) As penas foram
agravadas artificialmente, em debates onde se disse, explicitamente, que
a prioridade era garantir que os réus fossem encarcerados – e não que a
justiça deveria ser feita.
D) Os réus foram
acusados de desviar R$ 73,8 milhões do Banco do Brasil mas a própria
instituição nega, oito anos depois da denúncia, que qualquer centavo
tenha sido extraído indevidamente de seus cofres.
E) Os petistas
foram acusados de encobrir o esquema através de contratos fictícios com o
Banco Rural mas a Polícia Federal garante que foram verdadeiros e
envolviam empréstimos reais.
F) investigações
que poderiam ajudar na inocência de determinados réus até hoje se
encontram sob segredo de justiça. O julgamento já acabou e o segredo
continua.
Também é errado
falar em privilégio na fase de execução das penas. Presos num feriado de
15 de novembro, até hoje réus com direito a cumprir pena em regime
semiaberto são mantidos em regime fechado – a última novidade é avisar
que mesmo quem tiver conseguido trabalho fora da prisão deverá, em nome
da” igualdade,” aguardar no fim da fila pelo exame de seus pedidos.
Sabemos o que isso significa, certo? Também sabemos que o fatiamento dos
mandatos de prisão foi anunciado como uma medida que iria beneficiar os
réus. Na prática, o que se vê é uma forma de garantir que fiquem em
regime fechado – de qualquer maneira.
Os presos foram
deslocados para a Papuda em dia de feriado nacional, num esforço obvio
para usar seu infortúnio – a perda de liberdade é sempre um infortúnio
para cidadãos convencidos de seu valor, certo? -- como ilustração para
um evento de propaganda.
Um preso como José Genoíno está proibido de dar entrevistas, o que atenta contra a liberdade de expressão.
Que privilégios são estes?
Na realidade, o que se quer é negar o direito de uma pessoa pelo fato de que nem sempre ele se encontra ao alcance de todos.
Equivale a obrigar
um cidadão a pagar, como indivíduo, pelas irresponsabilidades e
omissões acumuladas por gerações e gerações que estiveram a frente do
Estado.
Qualquer calouro de
ciência política sabe que, num país onde a distribuição de renda e a
desigualdade seguem uma tragédia, a luta pela igualdade é necessária e
positiva.
Mas, na situação atual,
basta que os meios de comunicação, que definem o que é a opinião
publicada, que muitos confundem com a opinião pública, tenham disposição
de dar crédito a novilíngua quando ela convém. Pela falta de um
componente indispensável a seu trabalho, o espírito críticos, eles
referendam a manipulação do “privilégio” e do “privilegiado.”
Na ficção de Orwell, a função do ministério da Verdade era divulgar mentiras, não é mesmo?
Só quem nunca abriu um gibi de sociologia acredita que a vida real é um simples decalque das planilhas de renda do IBGE.
A experiência
demonstra que uma pessoa pode ser privilegiada, do ponto de vista
econômico e social, mas perseguida – até com violência -- do ponto de
vista político.
Milionário, o empresário Rubens Paiva foi preso, torturado e massacrado num ritual animalesco sob o regime militar.
Mortos com um tiro
na nunca, na guerrilha do Araguaia, quando estavam desarmados e
dominados, dezenas de militantes do PC do B haviam saído de famílias de
classe média, tinham diplomas universitários e seriam, em comparação aos
demais brasileiros, cidadãos privilegiados.
E até hoje o Estado
brasileiro não foi capaz de dar qualquer notícia sobre o paradeiro de
Rubens Paiva nem desses estudantes do Araguaia, situação que transforma
a dor de seus familiares num sofrimento idêntico ao dos parentes de
Amarildo, o humilde pedreiro torturado e morto pela PM numa favela do
Rio de Janeiro em 2013.
Nenhum torturador
de Rubens Paiva foi preso, nem julgado nem condenado. Idem para os
estudantes do PC do B. Idem, possivelmente, para os carrascos de
Amarildo.
Centenas de milhares de
brasileiros são vítimas, todos os dias, da incompetência da policia para
prender e controlar a violência de criminosos comuns. Milhões de
mandados de prisão destinados a prender ladrões de automóvel,
assaltantes de resistência, quadrilhas de sequestradores, não são
cumpridos.
Vítimas de assalto e de roubo
muitas vezes sequer se animam a fazer qualquer denúncia porque tem
certeza de que será inútil – ou mesmo arriscado, caso tenham de
identificar suspeitos.
Estrutura de classe? Privilégio?
Do playboy Doca
Street ao doutor Osmany Ramos, sem falar em vários casos de
médicos-monstro de nossos consultórios, e até banqueiros especialmente
inescrupulosos, o inferno de nosso sistema prisional possui exemplos de
habitantes dos degraus superiores que foram colocados atrás das grades.
Embora a impunidade seja grande, vez por outra até figurões do
judiciário são apanhados e denunciados.
O discurso contra o
privilégio dos prisioneiros da ação penal 470 também alimenta uma
operação de marketing político. É uma arma eleitoral, na realidade.
Procura associar a condição de
riqueza e privilégio econômico a lideranças de um governo que tem um
histórico reconhecido de combate a desigualdade na renda e na ampliação
das oportunidades para os mais pobres. A tentativa é mostrar que todos
os governos são iguais e que nenhum político tem valor.
É aquilo que os estudiosos chamam de desconstrução.
E assim voltamos ao
período em que nasceu a novilíngua. Foi o tempo dos Grandes Expurgos,
quando, através da violência e da ditadura, Josef Stalin eliminou uma
geração inteira de combatentes e lideranças da vida política da antiga
União Soviética e consolidou um poder absoluto que manteve até a morte,
quase vinte anos depois.
“Morte aos cães!” gritava o
procurador geral, Andrey Vichinsky. Aos condenados, punidos com a pena
de morte, exigia-se que aceitassem suas penas, admitissem suas falhas,
confessassem erros e, em especial, traições. Sim, esta palavra, traição,
era essencial. O importante, de qualquer modo, era que morressem depois
de confessar. Não podia haver ilusão quanto a seu destino na história.
Estavam condenados e precisavam admitir sua culpa, sua falha, sua
fraqueza.
É assim que, 80 anos depois, em outro país, em outro contexto, sob outro regime, se fala em privilégios e privilegiados. É
uma parte importante dos combatentes da ditadura, onde se encontram, e
eu duvido que seja pura coincidência, os mais decididos, mais resolutos,
mais corajosos, aqueles que mais estiveram comprometidos com mudanças
reais e com a construção de uma democracia de conteúdo social, aliada
dos mais pobres, dos excluídos, dos negros, que devem ser silenciados.
Um quarto de século depois da
democratização do país, os brasileiros convivem, pela primeira vez, com
um sistema plítico onde a polarização política reflete, menos
remotamente do que gostariam nossos sociólogos da aristocracia, uma
certa divisão de interesses de classe na sociedade. Não vamos criar
fantasias nem caricaturas. Todos sabemos dos limites e falhas
inesquecíveis do governo Lula-Dilma desde 2003.
Mas eu acho difícil negar que,
apesar disso, os brasileiros vivem uma situação nova na sociedade, onde
as camadas inferiores obtiveram direitos e conquistas.
Deixo para os
historiadores e os eruditos verdadeiros e independentes, que não estão
na folha de pagamentos da novilingua industrial, nem usam uma bola de
cristal de uma cigana sobrancelhuda que só faz profecias para anunciar
desastres, a tarefa de encontrar um outro governo, em nossa história,
que tenha demonstrado um empenho tão profundo com a preservação do
emprego, a melhoria do consumo e a distribuição de renda. Num período de
capitalismo de abismo, este é o grande diferencial, a primeira
fronteira, o ponto de partida, a luta inicial. É a resistência, num
universo onde economistas do Estado mínimo dizem que comer bife todo dia
é extravagância.
É por causa disso
que palavras fora do lugar, como “privilégio” e “privilegiados” têm
tanta importância. É ali que está o alvo a ser atingido pela novilíngua.
Não são os prisioneiros, alguns
competentes, outros trapalhões, outros as duas coisas. Talvez até haja
corruptos entre eles, vamos admitir, até porque sabemos que podemos
encontrar essas pessoas em todos os cantos de nosso universo político,
em casos até mais cínicos e escancarados. Mas nós sabemos que, sem
provas, isso é igual a nada.
Paulo Moreira Leite. Diretor da Sucursal da ISTOÉ em Brasília, é autor de "A Outra História do Mensalão". Foi correspondente em Paris e Washington e ocupou postos de direção na VEJA e na Época. Também escreveu "A Mulher que Era o General da Casa".
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