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Em entrevista, ministro do STF Marco Aurélio rejeita impeachment, critica Sérgio Moro e diz que Câmara de Deputados não poderia ter votado, pela segunda vez em 2015, emenda que autoriza financiado privado para partidos

No final da entrevista do ministro Marco Aurélio Mello ao Espaço Público, programa da TV Brasil exibido nesta terça-feira, tive a certeza de haver presenciado um depoimento histórico, em companhia dos também entrevistadores Florestan Fernandes Junior e Felipe Recondo.

Com a experiência de quem irá completar 25 anos de Supremo Tribunal Federal, a entrevista de Marco Aurélio foi uma aula de 58 minutos, construída a partir de argumentos lógicos e princípios claros, na qual o ministro não perdeu a oportunidade de confirmar uma de suas afirmações favoritas, aquela que diz que “a coragem é a maior das virtudes.” Pela importância do entrevistado, pela relevância dos assuntos que abordou, seu depoimento tem a força de um fato político.

Sem perder-se em raciocínios rebuscados e terminologia incompreensível, que costumam atazanar aparições públicas de tantas autoridades do judiciário, Marco Aurélio falou com firmeza e segurança a respeito de temas atuais, de alta importância política. Perguntando sobre um possível impeachment da presidente Dilma Rousseff, o ministro disse que não via fatos capazes de autorizar uma investigação da presidente. Sem deixar de manifestar a vontade de que possíveis irregularidades sejam investigadas e esclarecidas, Marco Aurélio deixou claro que duvidava das vantagens, para o país, enfrentar um segundo impeachment desde o retorno das eleições diretas, em 1989.

Uma semana depois que a Câmara aprovou a PEC que autoriza as contribuições de empresas privadas para partidos políticos, em segunda votação em 48 horas, o ministro não teve o menor receio de encarar o assunto, talvez o mais relevante daquela expressão (“reforma política”) que enganosamente dominou as conversas de Brasília nas últimas semanas.

Considerando que o artigo 60 da Constituição impede a reapresentação de uma emenda constitucional na mesma seção legislativa, o ministro lembrou um fato ululante, que sequer deveria ser discutido por pessoas sérias: a regra escrita na Constituição deve prevalecer acima de outras deliberações. Em outras palavras, a segunda votação sequer deveria ter acontecido e seu resultado não tem o menor valor legal.

É uma visão que dá uma perspectiva real de sucesso a uma solicitação de 64 deputados já apresentada ao STF, questionando a PEC do financiamento de campanhas, derrotada por uma diferença de 76 votos na primeira votação. Pela interpretação de Marco Aurélio, baseada em artigos redigidos de forma cartesiana pelos constituintes de 1988, os festejos do rolo compressor de Eduardo Cunha nessa matéria terão vida curta. (Ele também criticou a atitude de Gilmar Mendes em engavetar o voto sobre o tema por um longo período. Lembrou que os pedidos de vistas devem servir para a reflexão do magistrado e incluir um período razoável de tempo — em vez de servir para tentativas de modificar uma situação politica desfavorável).

Em seu conjunto, a entrevista — que será reprisada neste domingo a partir das 23 horas — é uma oportunidade rara de compreender em profundidade um ponto de vista que se opõe a visão hegemônica que tem sido apoiada pela maioria dos meios de comunicação desde o julgamento da AP 470 e também sobre a Operação Lava Jato — onde é fácil enxergar atitudes que lembram um linchamento em praça pública, sem relação com o distanciamento e serenidade que devem acompanhar decisões civilizadas.

Entre seus onze pares no Supremo, Marco Aurélio é hoje o principal porta-voz do pensamento garantista, aquele que, sem deixar de reconhecer a relevância de punir o crime e os criminosos, coloca a defesa dos direitos e garantias individuais como principal obrigação de todo juiz.

Durante o regime militar, este pensamento denunciava os abusos — que incluíam a tortura — como técnica de interrogatório de prisioneiros. Nos dias de hoje, a defesa dos direitos individuais inclui a condenação de abusos — como longas prisões preventivas — destinadas a convencer prisioneiros a fazer delações que podem diminuir suas penas, num exercício que vários especialistas definem como tortura psicológica.

Em 2012, Marco Aurélio foi um aliado solidário de Ricardo Lewandovski em decisões relevantes, como a defesa do desmembramento do julgamento. Ontem, respondeu a várias questões sobre a AP 470, feitas pelos entrevistadores e também pelo público, através das redes sociais. O ministro demonstrou uma satisfação — difícil de disfarçar — por sua postura na época, o que era inteiramente compreensível em minha opinião.

Se, em vez de rejeitar o desmembramento por 9 votos a 2, o Supremo tivesse aceito favorável aquela medida, poderia ter sido possível evitar o vergonhoso final com dois pesos e duas medidas — o julgamento dos réus ligados ao Partido dos Trabalhadores, condenados e recolhidos a Papuda para o cumprimento de suas penas, e os acusados ligados ao PSDB, que até agora sequer receberam uma primeira condenação.

A entrevista ao Espaço Público foi realizada dois meses depois que o ministro publicou um artigo chamado “Prender e Soltar”, no qual deixava claro seus questionamentos às longas prisões preventivas em vigor em nosso sistema prisional e também na Lava Jato. Ontem, respondendo a uma questão colocada pelo advogado Nelio Machado, Marco Aurélio fez críticas sempre respeitosas mas diretas ao juiz Sérgio Moro. Falando com a segurança de quem domina os próprios argumentos e estudou demoradamete o ponto de vista adversário, fez ressalvas às delações premiadas, lembrando que o depoimento de um co-réu mais pode ser visto como única prova para sustentar uma acusação criminal. Marco Aurélio deixou claro ter sérias dúvidas sobre o destino das acusações quando forem examinadas por tribunais superiores, inclusive pelo STF.

O ministro ainda lembrou um ponto de princípio do Estado de Direito, que determina a separação entre o trabalho de investigar, acusar e julgar, para deixar claro seu inconformismo com a supremacia do Ministério Público, que comanda a investigação e depois faz a acusação. Empregando o bom senso que alimenta boa parte de seus argumentos, Marco Aurélio recordou um aspecto óbvio: por mais bem intencionado que seja, o sujeito encarregado de montar uma acusação está condenado a dirigir uma investigação — que deveria ser neutra e isenta — para seus propósitos finais.

Claro que, na condição de apresentador do Espaço Público, sou suspeito para falar. Mas duvido que seja possível negar que Marco Aurélio Mello produziu 58 minutos imperdíveis sobre Direito, Justiça e Cidadania..
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