23/02/2016
Um publicitário na Justiça do espetáculo
Paulo Moreira Leite
Do ponto de vista de quem trabalha para afastar Dilma Rousseff da presidência da República, o pedido de prisão do publicitário João Santana é uma medida da maior utilidade. Representa a possibilidade de alterar uma situação até agora pouco favorável no Tribunal Superior Eleitoral, onde as chances de cassar a chapa Dilma-Temer, vitoriosa nas eleições de 2014, se mostram mais remotas do que se costumava imaginar -- até agora.
Explica-se. Tanto pela qualidade das provas reunidas até aqui, impressionantes pela fragilidade, como pelas mudanças regimentais a serem promovidas na composição do tribunal, nos próximos meses, estava em formação um quadro positivo do ponto de vista do respeito às leis em vigor e às regras da democracia. Ainda que esteja prevista, para breve, a posse de Gilmar Mendes na presidência do TSE -- justo ele, um adversário declarado e assumido do Partido dos Trabalhadores -- as outras mudanças no plenário anunciavam um ambiente de equilíbrio capaz de permitir uma decisão isenta e responsável.
A prisão de João Santana pode mudar este quadro -- do ponto de vista político, e não jurídico. Da publicidade, e não dos fatos e provas. Ao levar para a cadeia -- de início temporariamente -- o profissional responsável pela propaganda das três últimas campanhas presidenciais do Partido dos Trabalhadores, inclusive a de 2014, sem falar em outras disputas estaduais e municipais também relevantes, tenta-se fazer aquilo que não se conseguiu realizar até agora: aproximar a campanha de Dilma com esquemas condenáveis de corrupção com a Petrobras.
Por isso tornou-se conveniente para o juiz Sérgio Moro autorizar o pedido de prisão de João Santana, feito pelo Ministério Público, em vez de aceitar sua oferta para prestar esclarecimentos em liberdade, como é direito de toda pessoa que não representa nenhum perigo real para a vida em sociedade. A demonstração de desprezo pelos direitos de uma pessoa acusada é grande serventia para os rituais do espetáculo. O esforço para questionar -- com modos brutais -- os direitos dos investigados faz parte de um jogo destinado a diminuir a legitimidade da defesa, necessária para apontar qualquer argumento, relevante ou não, como simples manobra protelatória de quem tem dinheiro para pagar advogado. Não se quer apurar, investigar. O plano é punir.
Na verdade, o próprio delegado responsável pela chamada operação Acarajé reconhece a legalidade dos pagamentos feitos a João Santana pela campanha de Dilma. Admite que "não há, e isso deve ser ressaltado, indícios de que tais pagamentos estejam revestidos de ilegalidades."
Com imagens em sequência dela mesma, que se repetem há quase dois anos, o que a Lava Jato pretende é alimentar a retórica da impunidade.
Como uma grande campanha publicitária, ela se destina convencer a massa de brasileiros estruturalmente injustiçados que a corrupção -- e não a política -- explica os grandes males acumulados por 500 anos de história. Ao mesmo tempo, tenta amedrontar a elite do sistema judiciário -- e boa parte do sistema político, inclusive grandes empresários -- para evitar questionamentos sobre a Lava Jato.
Sou o primeiro a reconhecer a necessidade de se apurar e investigar denúncias de corrupção. Os casos denunciados na Petrobras são terríveis -- ainda que poderiam ser menos graves se tivessem sido enfrentados a tempo, muito antes da chegada do governo do Partido dos Trabalhadores ao Planalto. Nada se fez nem se faz contra quem nada fez.
Isso permite duvidar da eficácia de investigações que não respeitam as regras da democracia e fazem pouco do direito de toda pessoa ser considerada inocente até que se prove o contrário. Acredito que apenas pela via democrática é possível construir e praticar valores consistentes. E o primeiro desses valores é que todos devem ser iguais perante a lei.
Este é o ponto que separa a ditadura da democracia, a civilização da barbárie.
A retórica da impunidade assume uma outra visão. Sugere que a necessidade de punir tornou-se tão urgente, tão inadiável, que pode-se admitir sacrifícios de direitos e injustiças contra determinados cidadãos. Mesmo sem anunciar esse ponto de vista de forma clara -- o que seria escandaloso -- o que se defende é o atropelo das garantias democráticas como uma espécie de mal necessário, sem que se possa compreender exatamente: necessário para que? Para quem?
Olhando o cotidiano dos brasileiros com frieza, é possível questionar a ideia do "país da impunidade" com relativa facilidade. Deixando uma mistificação pacientemente construída desde o início dos anos 1950, quando partidos sem base popular falavam da necessidade de "regeneração moral do país", a verdade é que não se prende pouco. Prende-se muito. O problema é que se julga mal.
Basta recordar que o Brasil tem a quarta maior população encarcerada do mundo e que, se todos os mandatos de prisão fossem cumprido, a proporção de cidadãos enjaulados aumentaria em 20%, ou 200 000 condenados a mais. Num universo superlotado, seria preciso liberar centenas de milhares de condenados.
Um em cada três encarcerados sequer teve direito a uma condenação formal, mas cumpre, por anos, um período de detenção provisória. Muitas pessoas são condenadas em julgamentos onde a única prova contra elas é o testemunho de policiais responsáveis pela prisão --e pelo inquérito -- também pela coleta de provas, como demonstra um levantamento que mencionei aqui neste espaço.
E se você acredita que o problema é punir os de cima, convém ponderar o discurso e evitar confundir a fantasia conveniente com a realidade, muito mais complicada. Entre a renúncia de Fernando Collor e a AP 470, o país afastou um presidente da Republica, mandou para a prisão o ministro mais importante do governo Lula e também um presidente da Câmara de Deputados. Também tirou de combate vários dirigentes com papel memorável na democratização do país. Não foi só: a principal acionista de um dos grandes bancos privados de Minas Gerais foi condenada e presa, da mesma forma que os publicitários mais premiados.
Eu acho que muitas dessas punições foram erradas, com penas que não correspondiam as provas e muitas vezes sem prova alguma. Mas essas prisões ajudam a questionar a fantasia da impunidade, também. A grande questão é a seletividade, que mostra que, se na base da sociedade a Justiça acaba contaminada por razões sociais, no topo o tratamento se diferencia por razões políticas.
Este é o ponto, que retorna ao debate no pedido de prisão de João Santana.
O jornalista e escritor Paulo Moreira Leite é diretor do 247 em Brasília
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PITACO DO ContrapontoPIG
Muito triste e até bizarro, ver um país que além dos 3 poderes constituídos tem como ditador um simples e parcial juiz.
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