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29/10/2016
29/10/2016
Democracia violentada
Patrick Mariano: Enquanto as vítimas eram petistas, Gilmar e Renan se calaram. Mas o Estado policial não tem limites, eles podem até ser os próximos
Do Viomundo - 29/10/2016
por Conceição Lemes
Na última segunda-feira (24/10), em menos de 24 horas o juiz Sérgio
Moro, os procuradores da Lava Jato e os delegados da Polícia Federal
(PF) receberam estocadas de quem provavelmente não esperavam.
Primeiro, de Gilmar Mendes, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e presidente do Tribunal Superior Eleitor (TSE).
Em entrevista à Folha de S. Paulo, ao ser questionado sobre
as reações do Judiciário, inclusive de Moro e dos procuradores da Lava
Jato, contra o projeto de lei do senador Renan Calheiros (PMDB/AL), que
endurece as punições para autoridades que cometem abuso de poder, Gilmar
foi contundente:
“Parece que eles imaginam que
devam ter licença para cometer abusos! O projeto é de 2009 e não trata
exclusivamente de juízes e de procuradores, mas sim de todas as
autoridades: delegados, membros de CPIs, deputados. Tanto que a maior
resistência à proposta partiu de delegados de Polícia Civil na época.
Por isso o projeto ficou tanto tempo arquivado.
Agora, nós temos que partir de uma
premissa clara: a definição de Estado de Direito é a de que não há
soberanos. Juízes e promotores não são diferentes de todas as outras
autoridades e devem responder pelos seus atos”.
“(…) a Lava Jato tem sido um grande
instrumento de combate à corrupção. Ela colocou as entranhas do sistema
político e econômico-financeiro à mostra, tornando imperativas uma série
de reformas.
Agora, daí a dizer que nós temos que
canonizar todas as práticas ou decisões do juiz Moro e dos procuradores
vai uma longa distância.
É preciso escrutinar as decisões e criticar métodos que levam a abusos”.
Na segunda-feira à tarde, foi a vez do senador Renan Calheiros, presidente do Congresso Nacional:
“A Lava Jato é sagrada, ela
significará sempre avanços para o país, mas não significa dizer que não
podemos comentar seus excessos, e comentar excessos não significa
conspiração”
Foi durante coletiva de imprensa, onde anunciou que ingressaria no
STF com uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental
(ADPF), em razão da Operação Métis no Senado, deflagrada na sexta-feira
(21/10) pela PF.
Na ocasião, quatro policiais do Senado foram presos. A operação foi
autorizada pelo juiz federal Vallisney de Souza Oliveira, da 10ª Vara
Federal de Brasília.
Segundo Renan, o objetivo da ADPF é definir “claramente” a competência dos poderes:
“A submissão ao modelo democrático
não implica em comportamentos passivos diante de excessos cometidos por
outros poderes. Pedimos para fixarmos claramente os limites dos poderes,
porque um juizeco de primeira instância não pode a qualquer momento
atentar contra um poder. Mandado de busca e apreensão no Senado só pode
se fazer por decisão do Supremo Tribunal Federal”.
“Mais do que nunca é preciso defender
os valores democráticos. Esse é meu dever. É por isso que estou
repelindo essa invasão [a operação da PF], da mesma forma que repeli
todos abusos praticados contra o Senado Federal sob a minha
presidência”.
“A nossa trincheira tem sido sempre a
mesma: a justiça, o processo legal. Sem temer esses arreganhos,
truculências, intimidação. Eu tenho ódio e nojo de métodos fascistas,
por isso cabe a mim repeli-los”.
A presidente do STF, ministra Cármen Lúcia, reagiu:
“Todas as vezes que um juiz é
agredido, eu e cada um de nós juízes é agredido. E não há a menor
necessidade de, numa convivência democrática, livre e harmônica, haver
qualquer tipo de questionamento que não seja nos estreitos limites da
constitucionalidade e da legalidade”.
Há muito tempo especialistas denunciam os abusos da Lava Jato e a exacerbação do Estado policial no País.
A novidade é o fato de as elas terem partido de Gilmar Mendes e Renan Calheiros.
Daí
esta entrevista com Patrick Mariano, severo crítico do Estado policial
brasileiro. Ele é mestre em Direito, Estado e Constituição pela
Universidade de Brasília (UnB).
Viomundo — No início da semana, em menos de 24 horas, o
ministro Gilmar Mendes e o senador Renan Calheiros se insurgiram contra
os abusos praticados pela PF, Ministério Público e Judiciário
brasileiro. Gilmar, citando especificamente os procuradores da Lava
Jato. Renan, a ação da PF no Senado, prendendo quatro policiais
legislativos. O que achou do diagnóstico do ministro?
Patrick Mariano — A lucidez dele é efêmera. De
repente, tem um insight e se dá conta de que existe um Estado policial.
Em outros momentos se cala diante do arbítrio ou contribui para que ele
prevaleça. Geralmente, sua lucidez está ligada à proteção da sua classe
social e daqueles com os quais compartilha afinidades ideológicas. Mas
alguns pontos do diagnóstico dele estão corretos.
Viomundo — O que destaca?
Patrick Mariano – Primeiro, a crítica ao absurdo que
é servidores públicos, como o são os juízes, procuradores e delegados
da Lava Jato, se colocarem contra o projeto que pune o abuso de
autoridade.
Ser contra o projeto é quase uma confissão da prática de crime. Se
você examinar as ilegalidades dessa operação, tanto de método quanto de
concepção, talvez seja possível entender a resistência. A Lava Jato é
uma fonte inesgotável de arbitrariedades.
O segundo ponto que destaco é a crítica às prisões preventivas da operação, todas ilegais.
Viomundo — Por que ilegais?
Patrick Mariano — Porque buscam atender a outra finalidade que não resguardar o processo penal.
Viomundo — Por que estão contra o projeto?
Patrick Mariano –Talvez justamente porque pratiquem abusos e ilegalidades reiteradas.
Viomundo — Daria pra exemplificar algumas ilegalidades, arbitrariedades?
Patrick Mariano –São tantas que passaríamos horas
conversando. Mas destaco a jurisdição universal que parece ter Sérgio
Moro. Ele julga fatos que não são de sua competência. Determina prisões
ilegais e conduções coercitivas para satisfazer a chamada “opinião
pública” ou publicada, como diz o advogado criminalista Nilo Batista.
O ato de ilegalmente determinar a interceptação telefônica da
presidenta da República, Dilma Rousseff, e, depois, divulgar esse
conteúdo para a Rede Globo, sem ter competência para tanto, fala por si.
Viomundo – Até censura a um colunista da Folha o juiz Moro já tentou…
Patrick Mariano — Sim, pois é. Ao invés de responder
racionalmente ao artigo do físico e professor Rogério César de
Cerqueira Leite, Moro preferiu questionar a publicação, como se tivesse
investido de poderes de um soberano. Até estranhei a reação dele.
Imaginei que Savonarola fosse um exemplo intelectual, uma referência de
método empregado na operação.
Viomundo — O Renan ingressou no STF com uma ADPF por conta da operação da PF no Senado. O que acha?
Patrick Mariano – Se nós vivêssemos num momento de
respeito à Constituição e de segurança jurídica, isso não seria
necessário. Mas como não estamos, acho bastante importante. Servirá para
questionar possível violação, a separação entre os poderes e a
autoridade do juiz de primeiro grau que determinou a ação.
Viomundo — O juiz que expediu o mandado para a PF prender os
policiais legislativos poderia legalmente fazer isso ou extrapolou?
Patrick Mariano — Os policiais
legislativos agiram de ofício? Não, cumpriam ordens de senadores. Bom, o
juiz resolveu somente investigar a conduta desses servidores e não a
dos senadores, não é estranho?
Foi um passa-moleque na competência do Supremo Tribunal Federal.
Ao que tudo indica fazer varreduras está dentro da competência da
Polícia Legislativa — eu acho um erro tremendo a ampliação do poder
desses grupos — mas está lá.
Então, na verdade, foi uma ação provocadora da PF e do juiz de
primeiro grau para questionar a autoridade do Senado. Para amedrontar e
demonstrar poder.
Viomundo — Provocação ao Senado a troco de quê?
Patrick Mariano — Para exibir poder, criminalizar o
exercício da política e amedrontar o Poder Legislativo. Há muito tempo a
Polícia Federal se tornou um partido político. Agora, os procuradores
da República querem legislar e juízes de primeiro grau desafiam, sem
receio, a autoridade dos tribunais.
Viomundo — Não seria uma provocação também ao próprio STF?
Patrick Mariano –Sem dúvida. Aliás, juízes de
primeiro grau impediram nomeações de ministros por parte do Presidente
da República e o STF nada fez. Penso que o STF se tornou mera franquia
de uma Vara Federal. Não resguarda a Constituição e assiste impassível à
retirada da sua autoridade por juízes de primeiro grau.
Viomundo — O ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, disse que a PF estava correta, foi dentro da legalidade. E aí?
Patrick Mariano — O ministro da Justiça se tornou um mero porta-voz da Polícia Federal sem curso de Jornalismo nem media training.
Viomundo — A defesa que a ministra Cármem Lúcia fez do “juizeco” procede?
Patrick Mariano –Digamos que a manifestação da
ministra não está à altura do cargo que ocupa. Ora, como presidente do
STF e diante de reiterados ataques ao STF e à Constituição da República
de 1988, ela deveria ter outra postura. O cargo exige que aja no sentido
de defender a autoridade do tribunal e não só criticar, assim como
determinar a apuração de abusos de autoridade praticados por juízes.
Viomundo — Está dizendo que a Constituição e o STF estão sendo atacados e ela tem ficado quieta?
Patrick Mariano — Quieta não, é pior do que isso. Ela tem aquiescido e batido palmas, como fazem aqueles colunistas da Globo News naqueles debates de fim de tarde.
Viomundo — Que ataques o Supremo tem sofrido?
Patrick Mariano — Juízes de primeiro grau agem e
decidem como se fossem ministros do STF, ou seja, violam regras básicas
de competência. Isso gera um quadro de completa insegurança jurídica.
Viomundo — É impressão minha ou os juízes estão se achando
deuses, estão acima de tudo e todos, portanto não passíveis de
críticas?
Patrick Mariano – Infelizmente, a estrutura do Poder
Judiciário brasileiro ainda não se adaptou ao regime democrático.
Possui práticas quase monárquicas. Até pouco tempo as sessões das provas
orais dos concursos de juízes eram secretas e são vários os relatos de
candidatos e candidatas reprovados por machismo e idiossincrasias de
desembargadores.
Não há transparência nos gastos, muitos juízes recebem acima do teto
do funcionalismo e quando praticam crimes têm como pena a aposentadoria
com vencimento integral.
Viomundo — Por que só agora Gilmar e Renan estão chiando, considerando que os abusos vem sendo cometidos há um bom tempo?
Patrick Mariano — Lembra um pouco a situação do
morador de bairro alto diante de uma enchente. O rio começa a subir, mas
até então as casas alagadas estão distantes.
Enquanto as vítimas do Estado policial eram petistas, foi conveniente
se calar diante do arbítrio. O ledo engano de Gilmar e Renan é que o
Estado policial não tem limites, uma vez instaurado não há como conter.
As próximas vítimas podem até ser eles.
Aliás, em alguns casos o ministro Gilmar até incentivou esse estado
de coisas, como quando impediu a posse do ex-presidente Lula como
ministro-chefe da Casa Civil. Ou seja, penso que acordaram um pouco
tarde demais.
Viomundo — Daria para sinalizar a partir de quando esses abusos começaram a ocorrer?
Patrick Mariano — São vários fatores. A
criminalização da política foi estimulada pela grande mídia, executada
por atores do judiciário, Ministério Público e Polícia Federal e se
tornou um instrumento, talvez o principal, de partidos que queriam
“retirar do poder” o PT.
Basta lembrar a ação penal 470, o chamado mensalão, e programas como
CQC e o colunismo do ódio. Junto com isso, a inocência da gestão
petista, que permitiu a ampliação legislativa do Estado policial sem
qualquer contraponto crítico.
E, por fim, a ascensão política de jovens procuradores e juízes
fabricados do dia para a noite, como personalidades públicas, porque se
tornaram verdugos de inimigos políticos. O problema é que soltaram um
monstro e agora não sabem como colocar de volta na jaula.
Viomundo — Você diz: “inocência da gestão petista que
permitiu a ampliação legislativa do Estado policial sem qualquer
contraponto crítico”. Explique melhor.
Patrick Mariano — A gestão da presidenta Dilma foi
responsável por não impedir o avanço legislativo do Estado policial.
Muitas vezes foi até indutor da aprovação de leis de claro conteúdo
protofascista e que permitem o arbítrio estatal, como a lei de
organizações criminosas.
Viomundo — O PT apostou no republicanismo, que foi usado pelas corporações pra gestar o ovo da serpente?
Patrick Mariano — Sem ter tido qualquer projeto para
o sistema de justiça, agora o PT é vítima de leis autoritárias que
ajudou a criar. É uma triste ironia. Mistura de arrogância com inocência
quanto à luta de classes e quanto ao papel do Estado.
Viomundo — Isso aconteceu tanto nos governos Lula e Dilma?
Pelo o que eu li, foi o Tarso Genro, por exemplo, que descentralizou a
inteligência da PF, permitindo que, em cada se estado, ela fizesse o que
bem quisesse.
Patrick Mariano — As gestões do PT no Ministério da
Justiça foram muitos ruins e refletem a falta de uma visão estratégica
para o sistema de justiça, com exceção do ministro Eugênio Aragão que,
infelizmente, ficou pouco tempo. Tarso ainda foi firme na questão do
Cesare Battisti, de resto as atuações foram pífias e patéticas.
Viomundo — Nós estamos vendo um aumento da criminalização dos movimentos sociais. Isso faz parte do Estado policial?
Patrick Mariano – Para os assim
chamados debaixo — as classes mais pobres e os movimentos de cidadania e
reivindicatórios — o Estado policial chegou há décadas. Mas os efeitos
da sua ampliação nos últimos anos serão ainda mais nefastos.
A decisão do STF de desrespeitar o princípio constitucional da
presunção de inocência fará com que os números do encarceramento em
massa sejam ainda mais absurdos. Assim como a desastrosa política de
gestão judiciária que restringiu enormemente a eficácia do habeas
corpus.
Com o avanço de políticas neoliberais haverá protesto social e, para
refreá-lo, o direito penal, ampliado pela equivocada gestão petista,
servirá como instrumento poderoso.
Viomundo – Está se referindo à decisão do STF que possibilita a prisão em segunda instância?
Patrick Mariano — Sim, um horror aquele julgamento.
Ali houve uma opção clara da Corte Suprema pelo punitivismo e pelo
encarceramento em massa em total desrespeito à Constituição que
assegura, sem limitações, a presunção de inocência.
Viomundo — Como acabou eficácia do habeas corpus?!
Patrick Mariano — Por uma
desastrosa decisão de gestão judiciária limitaram — e muito — o habeas
corpus, instrumento histórico de defesa do cidadão contra o arbítrio
estatal.
Viomundo — O que significa a ampliação do direito penal na gestão do PT?
Patrick Mariano – No poder, a esquerda não se deu
conta de que a sua luta histórica é pela ampliação dos direitos e das
garantias individuais. Flertou com o populismo penal e, agora, paga um
trágico preço.
Viomundo — Em que medida a lei antiterrorismo da presidenta Dilma está contribuindo para isso?
Patrick Mariana — É mais um equívoco legislativo
tremendo. Centenas de organizações da sociedade civil pediram ao governo
que retirasse esse projeto. Em vão. A lei foi aprovada cheia de erros e
com artigos inconstitucionais. Na verdade, é mais um instrumento
punitivo nas mãos de poder político.
Viomundo — Quais as consequências?
Patrick Mariano –Mais repressão.
Viomundo — O que a sociedade deve fazer?
Patrick Mariano — Os movimentos populares precisam
se organizar cada vez mais. Além disso, denunciar e exercer a
solidariedade. E, claro, refletir e procurar entender porque parte da
esquerda, mesmo diante de inúmeros avisos, não se deu conta de que sua
luta histórica é pela efetivação e ampliação dos direitos e não pelo seu
sufocamento.
PS: Ontem, quarta-feira (26/10), após essa
entrevista, houve a divulgação de que ONU aceitou a petição do
ex-presidente Lula que denuncia as ilegalidades do sistema de justiça
praticadas em seu desfavor e de sua família. Por isso, fiz hoje mais
esta pergunta a Patrick Mariano:
Qual o significado ou possíveis reflexos da aceitação da
denúncia do ex-presidente Lula pela ONU, evocando pactos e decisões das
cortes internacionais?
Patrick Mariano — Se o sistema de justiça brasileiro
não tem sido capaz de garantir os direitos e garantias fundamentais dos
seus cidadãos, resta o pedido de proteção aos fóruns e organismos
internacionais. Se consideramos que vivemos em um Estado policial, os
efeitos são semelhantes às cartas que denunciavam a tortura na época da
ditadura. Isso é importante porque fura a bolha e o conluio que existe
entre a grande mídia brasileira e a inquisição de juízes e procuradores.
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