18/03/2018
SOBERANIA EM XEQUE
O golpe e o pré-sal: origem, desenvolvimento e consolidação da crise
Da REDE BRASIL ATUAL - publicado 18/03/2018 11h17
Lula e Dilma em 2008 celebram o início da produção do pré-sal: interesse do Brasil sobre o interesse das corporações
por William Nozaki*
Fatores políticos e econômicos atuam para configurar a crise que fere a soberania popular e remonta aos interesses ligados à exploração de uma das maiores riquezas naturais do planeta atualmente
Origens do golpe (2005-2007)
Do ponto de vista econômico, há quem encontre os primeiros sinais da crise em 2011, com a perda de dinamismo do ciclo interno de consumo e crédito e com o esgotamento do ciclo externo de valorização das commodities; há ainda os que localizam o início da crise em 2014, com a implementação do ajuste recessivo e a guinada brusca em direção a uma política fiscal e monetária pautadas pelo excesso de austeridade.
Do ponto de vista político, por seu turno, as divergências não são menores, há quem centre a análise nas insurgências e turbulências sociais de 2013; nesse ponto o dissenso é ainda mais acalorado e oscila ora entre a romantização, ora entre o ceticismo com relação àqueles eventos; mas há também os que preferem observar o período pela ótica do tensionamento e da ruptura constitucional de 2016 com a abertura do processo de impeachment que desfechou o golpe contras as forças democrático-populares e nacional-desenvolvimentistas.
O mais provável é que a combinação desse planetário de problemas nos tenha conduzido à crise que assola o país. Para compreender a complexidade do cenário, entretanto, há que se considerar não apenas a lupa que nos permite visualizar de maneira mais detalhada como se articulou o golpe contra a soberania popular, mas é importante também lançar mão do telescópio que nos permite enxergar de modo mais amplo como foi desferido o golpe contra a soberania nacional.
Nesse sentido, as “coincidências” entre o calendário da crise (e de coesionamento das forças liberal-conservadoras que protagonizaram o golpe) e o calendário do desmonte da Petrobras (e da desnacionalização de recursos estratégicos como o pré-sal) nos permite levantar uma hipótese: talvez a trama que urdiu o golpe tenha se iniciado muito antes do que tem aventado a maior parte dos analistas da nossa conjuntura. Não se trata de estabelecer relações causais diretas entre o golpe e o petróleo, mas se trata de apontar e reconhecer, no mínimo, certas afinidades eletivas entre um e outro. Vejamos.
Talvez o primeiro capítulo para se fazer a reconstrução da gênese da atual crise remonte ao triênio de descoberta do pré-sal. Entre 2005, 2006 e 2007 a Petrobras encontrou os primeiros indícios de petróleo nas camadas marítimas subterrâneas nas Bacias de Santos (SP) e de Campos (RJ). Nesse mesmo período se inicia o julgamento da Ação Penal 470, conhecida como escândalo do Mensalão, e pela primeira vez se lança mão da teoria do domínio do fato e se coloca em suspensão o princípio da presunção de inocência, além disso, toma forma a espetacularização que faz de cada julgamento individual um justiçamento midiático. Vale lembrar que também nesse intervalo as ruas são tomadas pelo Movimento Cívico pelo Direito dos Brasileiros, autodenominado Cansei, encabeçado por João Doria Jr., com o apoio de setores conservadores da sociedade e financiamento de entidades internacionais dos EUA. Trata-se de uma espécie de ensaio preliminar, introdutório, dos dispositivos que mais tarde nos levariam a um Estado de exceção e a um avanço do reacionarismo, ambos reduzindo o Estado de Direito a um estado de convicções.
Desenvolvimento do golpe (2008-2015)
Mas essa história começa a ganhar maior musculatura a partir de um acontecimento pouco lembrado atualmente, e que talvez seja o primeiro capítulo do golpe: em janeiro de 2008, um ano após o início da produção do pré-sal, a Petrobras foi vítima do furto de um de seus contêineres dentro do qual havia quatro notebooks, dois HDs e um conjunto de informações sigilosas sobre a exploração de petróleo na bacia de Santos.
Na ocasião a Polícia Federal definiu uma linha única de investigação: a hipótese de espionagem industrial, dado que não se furtou todo o conteúdo do container, mas apenas aqueles itens em que havia informações sigilosas. Foram investigadas as duas empresas responsáveis pelo transporte: a norte-americana Halliburton e a brasileira Transmagno, entretanto, subitamente a Polícia Federal mudou sua linha de investigação e passou a tratar o caso como furto comum, prendendo apenas quatro vigilantes do terminal portuário.
O segundo capítulo dessa história nos remonta ao ano seguinte. Em outubro de 2009 foi realizada uma grande conferência no Rio de Janeiro reunindo membros da Polícia Federal, do ministério público e do judiciário com autoridades do governo norte-americano a fim de debaterem procedimentos e métodos de combate à lavagem de dinheiro e ao terrorismo. Esse evento contou com a participação ativa do até então desconhecido juiz Sergio Moro, no âmbito de uma articulação denominada Bridge Project.
O caso veio à tona apenas com o vazamento feito pela Wikileaks. Alguns anos depois, Sergio Moro e seu método de condução da Operação Lava Jato tratariam de criar, de forma simplista e equivocada, uma associação direta entre os pacotes de investimentos da Petrobras no pré-sal e os desvios provocados pelos casos de corrupção.
O terceiro capítulo, por seu turno, remete à disputa eleitoral ocorrida em 2010, tendo como principais candidatos José Serra (PSDB) e Dilma Rousseff (PT). Uma vez mais, um vazamento posterior da Wikileaks revelou que naquela ocasião o candidato tucano trocou um conjunto de telegramas com uma alta executiva da petrolífera norte-americana Chevron – a mesma empresa que desistiu do projeto de exploração do pré-sal em virtude dos elevados custos de exploração no primeiro poço – tratando da importância de se fazerem mudanças mais drásticas nos marcos de exploração e produção do pré-sal.
Vale lembrar: no final daquele ano, em dezembro de 2010, o governo Lula havia conseguido aprovar o regime de partilha para a exploração do pré-sal, garantindo a atuação da Petrobras como operadora única e partícipe prioritária dos leilões. Não por acaso o projeto que alterou a participação da Petrobras nas camadas do pré-sal foi originalmente concebido por José Serra, que antes mesmo de ganhar as eleições, provavelmente, já se comprometia com pressões e interesses não necessariamente nacionais, como deixam claros os telegramas vazados.
Além disso, não parece ser uma hipótese desprovida de sentido desconfiar da nomeação de José Serra para o Ministério das Relações Exteriores do governo Temer – dada sua derrota eleitoral, talvez esse tenha sido o melhor espaço para que o atual senador pudesse cumprir as promessas que antes havia realizado para as petrolíferas de fora do país.
O quarto capítulo desse rascunho histórico-conjuntural se dá entre 2011 e 2012. Nesse momento, a grande imprensa começou a noticiar de forma mais sistemática as “frustrações do mercado” com o desempenho da Petrobras. O argumento pró-mercado se concentrava na reclamação de que a estatal não estaria batendo suas metas de produção e lucro, a gestão da companhia já alertava para o fato de que o grande pacote de investimentos, da ordem de US$ 55 bilhões, feitos pela empresa exigia um tempo de maturação até que a produção aumentasse de forma crescente e exponencial, como veio a acontecer pouco tempo depois graças ao sucesso da produção do pré-sal sal e da redução de seus custos de extração.
Nesse mesmo ano ocorre um redirecionamento estratégico da política de energia norte-americana, detalhada no documento governamental Blue Print for a Secure Energy. O Brasil aparece em três das sete diretrizes estratégicas elencadas no documento, é tratado como um país cujas tecnologias nas áreas do pré-sal, biocombustíveis e hidrocarbonetos não convencionais precisam ser observadas com cuidado.
Não por acaso ainda em 2011 Barack Obama visitou as instalações da Petrobras, repetindo o gesto que havia sido realizado no ano da descoberta do pré-sal, em 2007, por George Bush. Mas há ainda mais players interessados nessa nova fronteira. Além dos Estados Unidos, França, Noruega e China colocaram no centro de suas políticas energéticas a entrada no segmento do pré-sal brasileiro. Empresas como a europeia Shell e a asiática CNPC também ampliaram seus investimentos em exploração e produção no Brasil. Não é exagero afirmar que nesse momento boa parte da grande imprensa nacional atuou como porta-voz das operadoras estrangeiras interessadas em ingressar no pré-sal brasileiro.
Já em 2013, toma forma o quinto capítulo dessa história conturbada: o consultor de informática da NSA (Agência Nacional de Segurança, sigla em inglês), Edward Snowden, revelou documentos que mostravam como a presidenta Dilma, ministros e altos dirigentes do governo, assim como a rede de computadores da Petrobras estavam sendo alvo de alta espionagem. Uma vez mais ficava claro o interesse norte-americano sobre a tecnologia envolvendo a exploração em águas profundas. O que colocou o Brasil na lista dos países mais espionados do cenário internacional.
Nesse mesmo ano, após os vazamentos, o governo norte-americano decidiu pela troca de sua embaixadora no Brasil, nomeando Liliana Ayalde, conhecida por ter atuado no Paraguai participando ativamente das movimentações que derrubaram o presidente Fernando Lugo, intensificando a reversão liberal-conservadora na América Latina. Além dessa troca, em outubro de 2013 foi realizado o primeiro leilão do pré-sal sob o regime de partilha. Como forma de pressão contra o protagonismo da Petrobras, as petrolíferas norte-americanas (ExxonMobil e Chevron) e inglesas (BP e BG) boicotaram o leilão e decidiram pela não participação. Mais ainda: é nesse período que começa a tomar corpo aquela operação que tomaria conta do noticiário nacional.
Em março de 2014, é deflagrada a primeira fase ofensiva da Operação Lava Jato e se inicia a criminalização do projeto de desenvolvimento baseado no ativismo estatal e na centralidade da Petrobras como polo para o avanço industrial e tecnológico do país. É incontestável o mérito da pauta de combate à corrupção, entretanto, os métodos utilizados pela Operação Lava Jato são integralmente contestáveis, pois se valem de procedimentos seletivos, perseguições indevidas, além da espetacularização de suas ações, tudo ancorado na problemática premissa de que o Estado seria o império do vício, enquanto o mercado caberia no reino da virtude.
É curioso notar: o empenho que a Operação Lava Jato desde seu início dedica à busca de conflitos de interesse e tráficos de influência envolvendo a Petrobras nem de longe se compara à negligência com que ela trata as empresas estrangeiras.
O resultado tem sido a destruição da economia nacional em favor da autopromoção de uma casta jurídica de atuação, no mínimo, duvidosa e de um grupo político-partidário inequivocamente corrupto. Direta ou indiretamente ambos concorrem para a aceleração da entrada de atores estrangeiros na exploração e produção do pré-sal. Ainda em novembro de 2014, o senador José Serra, enfim, apresentou a redação final de seu projeto de emenda constitucional para a mudança nos marcos de exploração e produção do pré-sal, subtraindo o papel da Petrobras nesse setor. A reconstrução desses episódios parece nos colocar diante de uma teoria da conspiração, mas em matéria de geopolítica a conspiração não é uma teoria, e sim uma prática, que compõe, aliás, a gramática do setor energético em geral e petrolífero em particular.
Consolidação do golpe (2016-2018)
Os passos que daí se seguiram, como todos sabemos, nos conduziram não ao fim de um período de instabilidade, mas ao início de uma crise ainda mais profunda que atravessou o ano de 2015 e culminou na conformação do governo Temer em 2016, nos trazendo ao desmonte da Petrobras e à entrega do pré-sal nos leilões realizados em 2017 e nos previstos para 2018.
É importante destacar: a confluência de interesses difusos do capital internacional, da elite político-partidária, da casta jurídico-policial, e da grande imprensa oligopólico-espetacularizada convergiram para o mesmo horizonte, tais atores não assistiram a esse processo apenas como títeres coadjuvantes dos interesses internacionais, mas se valeram desse momento para impor, como protagonistas agindo ao arrepio das urnas, os seus interesses corporativos, nos conduzindo até o trágico estado de coisas em que o país se encontra.
A descoberta e a exploração do pré-sal são resultado de investimentos da Petrobras que propiciaram o desbravamento de fronteiras geológicas, de engenharia e tecnológicas; em 2017, 48% do petróleo produzido no país foi oriundo de bacias na área do pré-sal; além disso, os campos do pré-sal têm maior potencial de produtividade e menor custo de extração, são fundamentais para a autossuficiência energética nacional e para a construção de uma transição energética sustentável. Estima-se hoje que haja ainda cerca de 100 bilhões de barris recuperáveis em campos do pré-sal, esse número coloca o país entre os dez maiores produtores de petróleo do mundo, o que poderia fazer do Brasil um grande player no tabuleiro geopolítico e geoeconômico global, além de criar condições para a construção de uma nova estratégia de desenvolvimento nacional. Entretanto, a diretriz do atual governo caminha na contramão dessa perspectiva.
Para o biênio 2017-2018 a meta da Petrobras é se desfazer de ativos em um montante que totalize US$ 21 bilhões, ao que tudo indica o pré-sal é o elemento que mais tem despertado o interesse e o apetite de investidores internacionais, todos eles buscando acessar os recursos naturais estratégicos e se apropriar da renda petrolífera. As empresas interessadas e habilitadas a participarem dos leilões do pré-sal sob o novo modelo de concessão, com exceção da Petrobras, via de regra são todas estrangeiras: ExxonMobil (EUA), Petrogal (Portugal), Petronas (Malásia), Repsol (Espanha), Shell e BP (Reino Unido), Statoil (Noruega), Total (França), CNODC (China) e QPI (Catar).
A Petrobras se apequena se retirando dos ramos da petroquímica, de biocombustíveis e de fertilizantes, abre o mercado de refino para uma centena de importadoras, sinaliza para a abertura de capitais da BR-Distribuidora, encolhe sua atuação logística, se desfaz de suas térmicas e promove a venda de campos estratégicos do pré-sal. Além disso, praticamente interrompe a política de conteúdo nacional, oferece renúncias fiscais às petrolíferas estrangeiras, interrompe o plano de investimentos e faz pagamentos antecipados a acionistas de fora do país.
Mas para além da entrada de grandes companhias petrolíferas no país, o que também chama a atenção é a participação de grandes fundos de investimentos no atual processo de privatizações. Noutras palavras, não só as empresas do setor, mas também o mercado financeiro está sedento pelas novas oportunidades abertas pela Petrobras.
Dessa vez, no entanto, é importante destacar: os interesses financeiros assediam a Petrobras desde dentro, na contramão da nova Lei de Responsabilidade das Estatais e do próprio Programa Petrobras de Prevenção da Corrupção. Dos nove conselheiros da empresa ao menos quatro mantêm ligação direta com o mercado financeiro, dois oito diretores da companhia ao menos três mantêm relações pregressas com indústrias interessadas na venda dos ativos da petrolífera brasileira.
Mais do que uma desestatização estamos diante de um processo de desnacionalização de um bem estratégico para o país. É notável o modo como parte da elite nacional defende a privatização de empresas estatais brasileiras, mas não se incomoda com a entrada de estatais estrangeiras no Brasil, usam como palavra de ordem o mote “meu país não será vermelho” para atacar os governos petistas, mas permanecem silenciosos e inertes, por exemplo, diante da chegada das “bandeiras vermelhas” do capital chinês que aporta no país.
Recentemente, o governo de Donald Trump divulgou suas diretrizes para a estratégia de segurança nacional dos EUA onde se pode ler: “os instrumentos econômicos – incluindo sanções, medidas de combate à corrupção e ações de execução judicial de empresas – podem ser parte importante de uma estratégia mais ampla para dissuadir, coagir e restringir adversários”. A disputa geopolítica pelo petróleo usando como meio medidas de combate à corrupção faz parte da dinâmica geoeconômica norte-americana.
A manutenção do alinhamento do Brasil em relação a interesses internacionais, na questão petrolífera, se explicita também na recente nomeação do novo diretor-geral da Polícia Federal, Rogério Galloro, que atuou como adido do Brasil nos EUA, estudando lavagem de dinheiro e combate à corrupção no setor de óleo e gás ou no recente caso de como o ministro do comércio exterior do Reino Unido, Greg Hands, fez lobby em nome das petroleiras britânicas (BP, Shell e Premier Oil) pressionando o governo brasileiro para a redução de tributos e para o afrouxamento das regras do licenciamento ambiental.
Em momentos históricos decisivos para a estratégia de desenvolvimento nacional, a elite brasileira parece sempre ceder à sua cômoda posição de sócia-menor do capitalismo central e das grandes petrolíferas estrangeiras, uma posição favorável para sua acumulação privada, mas muitas vezes danosa para o projeto de desenvolvimento do país, que, a propósito, de tempos em tempos se vê sabotado diante de grupos de pressão cujos interesses pessoais e corporativos acabam levando à instabilidade das nossas instituições políticas e à entrega do nosso patrimônio nacional. Infelizmente, em um momento de grandes transformações internacionais, ao invés de aproveitar as oportunidades abertas pela descoberta de um recurso estratégico como o pré-sal, as forças governistas praticam o entreguismo preventivo, afinal, desbravar novas fronteiras de desenvolvimento exige risco, planejamento e trabalho, três coisas de que a elite brasileira parece não gostar.
*William Nozaki. Professor de ciência política e economia da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) e diretor técnico do Instituto de Estudos Estratégicos para o Setor de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (INEEP/FUP)
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