26/03/2018
Tíbios e insensíveis
Só no Brasil a condenação sem provas do preferido das urnas e o assassínio de Marielle Franco não provocam a revolta das ruas
Da Carta Capital — publicado 26/03/2018 00h10, última modificação 23/03/2018 12h27 Editorial
Pergunto-me o que aconteceria em um país de tradição democrática se um personagem como Marielle Franco tivesse sido assassinado
por Mino Carta
Diz Michel Temer que o assassínio de Marielle Franco representa “um atentado contra a democracia”. A melíflua figura não esmorece na exibição de sua desfaçatez. Atentado à democracia é tudo o que se deu em consequência do golpe de 2016, a começar pela presença dele mesmo na Presidência da República, pobre, infeliz República.
Temer age à vontade e até cogita da sua candidatura nas eleições marcadas para outubro próximo. Envolvido em escândalos de elevados calibres com responsabilidades largamente comprovadas no mesmo momento da condenação de Lula sem provas e ameaçado de prisão até o fim deste mês, e portanto impedido de voltar ao poder, vencedor certo do pleito.
O objetivo determinante do golpe foi exatamente este: rasgar a Constituição com a bênção de um Supremo dado a assaltar leis, a alegria do Congresso que a sacramentou 30 anos atrás e enfim liquidar Lula e o PT. Decisiva a contribuição da propaganda midiática no apoio irrestrito ao estado de exceção. Confiavam os golpistas na ignorância, na insensibilidade, na covardia, no medo crônico da maioria. Acertaram em cheio.
Temer é simbólico do desmando impune, o assassínio de Marielle é simbólico do atraso, do primitivismo, da medievalidade do Brasil.
Esta é a verdade factual para entender como se deu que o PT acreditasse na quimera da conciliação e tentasse se credenciar à promoção a elite. É do conhecimento até do mundo mineral que a conciliação só é possível entre as paredes da casa-grande, a qual considera Lula e seu partido ralé.
Os senhores de quando em quando se desentendem, e, a bem da segurança da mansão medieval, tratam de reconciliar-se. É por isso que quartzo e feldspato sabem que apenas um poderoso abalo social muda o destino do Brasil. Receio que esta também seja quimera.
Pergunto-me o que aconteceria em um país de tradição democrática se um personagem político como Marielle Franco tivesse sido assassinada nas mesmas circunstâncias. Posso ouvir o clangor do protesto das ruas. Sabemos que a maior desgraça brasileira são três séculos e meio de uma escravidão que, de fato, não se encerrou no país da casa-grande e da senzala.
Faltaram ao Brasil os Iluministas, faltaram Danton, Marais e Robespierre, até aí, contudo, não vamos exigir demais. Faltou, isso sim, a inabalável convicção de lideranças dispostas a ir à luta quando necessário. Na quarta-feira 14 estive no Fórum Social Mundial em Salvador, e meu desalento cresceu.
Lembrei outro Fórum, o de Porto Alegre em 2002. Lula arengou para uma multidão fluvial, secundado por Maria da Conceição Tavares e Olívio Dutra, em meio a uma vibração empolgante a antecipar o triunfo eleitoral. Elevavam-se gritos de guerra e só me irritei ao participar de um debate sobre a mídia brasileira e ouvir de um certo senhor Martinet, do celebradíssimo Le Monde Diplomatique, que a censura ditatorial não havia poupado quem quer que seja, Globo inclusive.
Em Salvador fui tratado como um astro do tapete vermelho, assinei 200 livros, tirei centenas de selfies. Encontrei também generosos amigos e abracei com carinho Jaques Wagner, grande baiano. Dei-me conta, porém, de que quem aplaudia e gritava “Fora Temer” e “Lula lá” jamais sairia à rua para brigar.
Marielle ainda não havia sido assassinada, mas em qual país do mundo civilizado e democrático a sua morte deixaria de provocar a revolta popular? E qual país suportaria o golpe desfechado pela aliança entre os próprios poderes da República, com o apoio maciço da mídia, de setores da PF e, ao cabo, de Forças Armadas que se prestam à militarização da segurança? E que aceita como normalidade a incineração da Constituição, a destruição do Estado de Direito, a condenação do líder sem provas?
O PT tem graves culpas em cartório, já foi sublinhado inúmeras vezes por CartaCapital. O governo Lula praticou uma política externa de grande potência e deu passos importantes com a inclusão de várias camadas da população até então mantidas na fronteira da miséria. Acreditou, porém, na conciliação velha de guerra e escalou Henrique Meirelles no Banco Central do primeiro ao último dia dos dois mandatos, de sorte a garantir a aplicação de uma orientação substancialmente neoliberal.
No governo Dilma, os avanços sociais foram mantidos, mas a política econômica também prosseguiu no mesmo rumo enquanto a externa sofreu um nítido recuo. Reeleita, a presidenta cometeu um estelionato eleitoral ao chamar para a Fazenda um bancário de luxo e notável mediocridade depois da promessa da campanha de “erradicar a miséria”.
Cometeu o mesmo engodo de Fernando Henrique Cardoso quando, para se reeleger, assegurou a estabilidade da moeda e 12 dias depois de empossado para o segundo mandato desvalorizou o real e quebrou o País. Ocorre que FHC não é Dilma
No quadro de uma tibieza indesculpável, instalou-se uma Comissão da Verdade incapaz de cancelar uma lei da anistia imposta pela ditadura e de definir as responsabilidades dos chefes e dos seus comandados. Cuidou-se em compensação de propiciar o sono tranquilo dos torturadores. Nisto o Brasil firmou mais uma primazia negativa, na comparação com os demais países americanos que emergiram de ditaduras dispostos a punir exemplarmente quem merecia.
Cabe na moldura outra situação criada pela relação entre os governos do PT e a mídia nativa. O partido governou por 13 anos e meio e em momento algum mostrou vontade efetiva de combater o oligopólio. À primeira tentativa de botar ordem na orgia, atacado pela acusação de atentar contra a liberdade de imprensa, precipitou-se a engatar a marcha à ré.
Várias vezes, pessoalmente, tive a forte sensação de que o PT e seus governantes gostavam mesmo de aparecer no vídeo da Globo. Dilma, seja dito, esmerou-se na tarefa ao chamar Helena Chagas para a Secom e a antessala da secretaria tornou-se praticamente uma dependência global.
Naquele tempo, CartaCapital foi definida pela chusma de seus detratores como “revista chapa-branca”, por praticar o jornalismo honesto enquanto os demais da mídia já preparavam os dias de hoje ao sabor de omissões, mentiras, invenções de pura ficção. A Secom, entretanto, prontificou-se em relação a CartaCapital a aplicar critérios técnicos na distribuição de sua publicidade e a encher as burras dos seus inimigos.
Há um retoque sinistro à tragédia. A família de Marielle Franco surge no vídeo global na noite de domingo 18. Sem me atrever a imaginar alguma recompensa além da ventura de se exibirem no Fantástico, cenário mais empolgante da televisão nativa, os Franco da Maré, como se daria com a maioria dos figurões brasileiros da oposição, aceitaram o convite da emissora determinante da desgraça atual. E o PSOL carioca, Marcelo Freixo na frente, prima na categoria.
A análise honesta afirma a insensibilidade e a tibieza gerais, com exceções esparsas e certamente honrosas. Que recanto fantástico é este da bola de argila que roda em torno do Sol? É o Brasil, um país sem futuro.
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