08/09/2014
A arca de Marina e o dilúvio antipetista
As eleições deste ano definirão se o PT continuará ou não a ser a viga estruturante do campo progressista a partir de 2015. Dentro ou fora do Planalto.
Carta Maior - 07/09/2014
por: Saul Leblon
Lula foi ao ponto. Em encontro com a militância na 6ª feira, em São Paulo, o ex-presidente enfrentou abertamente a perplexidade que toma conta do campo progressista, diante do dilúvio que junta o dinheiro, a intolerância e o golpismo contra Dilma.
A perplexidade é proporcional ao aluvião que a inspira.
Há lugar para todos na arca de Marina. Fosse vivo, almirante Pena Boto, que presidiu a ‘Cruzada Brasileira Anticomunista’ nos anos 50/60, estaria dentro.
Catalisado pelo bordão omnívoro do ‘tudo, menos o PT’ o comboio ganhou agora a ilustrativa adesão do Clube Militar. Seus atributos dispensam apresentações; assinado pelo General Clovis Purper Bandeira, ex-ABIN e ex-aluno da Escola de Guerra dos EUA, o manifesto de apoio confere a Marina, em seus múltiplos significados, o apanágio de ‘ fio da esperança’ para derrotar o ‘lulopetismo’.
Nem em 1964 a espinha conservadora reuniu vértebras tão numerosas e de calcificação tão variada contra Jango.
O golpe recorreu aos tanques por carecer de uma liderança carismática.
Agora não precisa.
'Nosso problema não é falta de obras (para mostrar), é falta de política!”, advertiu Lula, diante do aluvião que já lambe a cintura do campo progressista.
Depois de criticar a opacidade geral da propaganda do partido, o ex-presidente alvejou o centro do alvo: ‘Ficamos economicistas. Um peão votar em patrão (Skaf)!? Isso era impensável! Temos que demarcar o campo de classe nessa eleição. Nossa propaganda na televisão tem que falar de política; (pelo amor de Deus) reservem pelo menos um segundo para falar de política!’
Não qualquer política.
Lula está falando de economia concentrada.
Concentrada no conflito de interesses decorrente do lugar que os homens e mulheres ocupam na estrutura da sociedade.
Seja dentro de uma fábrica ou em uma mesa de negociação.
Mas também no orçamento do Estado. Na destinação que lhes cabe da riqueza .
Na forma como essa repartição é regulada.
Na fatia apropriada pelos fundos públicos...
É dessa política que carece a propaganda do PT.
Lula fala do que vivenciou.
A experiência sindical ensinou ao torneiro mecânico que a paz social nunca é menos que a repressão dos oprimidos.
A engrenagem das demarcações históricas impregnou seu metabolismo nas assembleias e bastidores das grandes greves operárias dos anos 70 e 80 no ABC.
Por mais que o exercício do poder tenha sugado esse sangue, a memória não se perdeu.
A memória histórica é um pedaço do futuro.
Seu esquecimento não raro reitera o passado.
A memória vivida explica a argúcia de Lula ao atribuir ao PT parte da responsabilidade pela irresistível promessa de Marina.
A promessa de reunir os bons, quem sabe os puros, de qualquer forma os melhores.
Enfim, os homens e mulheres pios de um país desafortunadamente esgotado pela ‘polarização PT-PSDB’, como diz a candidata eólica, cujo programa emula os ventos da conveniência.
Lula sabe: Marina é a rosa dos ventos conservadores.
Fixou-se nela o ponto de coagulação de uma sociedade doutrinada diuturnamente pelo jogral do Brasil aos cacos, para o qual a mídia não se cansou de bombear água do antipetismo na última década.
Até que o dique se rompeu. Na conveniente dissipação das fronteiras políticas vocalizada por Marina Silva.
É sobre elas que Lula fala.
E pede urgência na restauração de um partido capaz de avivar o discernimento da sociedade para o arame farpado submerso nas águas indivisas do ‘tudo, menos o PT’.
A politização que Lula cobra ---em contraposição ao economicismo dos que preconizam derivar a sociedade justa da boa gestão macroeconômica, necessária mas insuficiente -- não é apenas um recado para esta eleição.
É um imperativo de aggiornamento histórico, do qual o escrutínio de outubro é um capítulo hercúleo e dilacerante, mas que não pode mais ser visto como um ponto de chegada.
Tornou-se um ponto de partida, independente do desfecho.
Em algum momento seria preciso dizer isso.
Lula começou a fazê-lo.
Uma parte do que se pode --e se deve-- arguir na candidatura de Marina também se pode --e se deve-- incluir na lista dos débitos a serem corajosamente debulhados pelo PT.
Marina aspira passar uma borracha na cisão que ordena o capitalismo brasileiro sem alterar a sua estrutura, mas consagrando-a integralmente às leis da pureza mercadista na economia; e da ‘verdade eleitoral’ das candidaturas avulsas, na política.
É assim que o aluvião conservador pretende erradicar o mal pela raiz: liquefazendo o papel do Estado no desenvolvimento e erradicando os partidos na democracia.
Marina fantasia uma ruptura que reafirma as balizas do regime ‘sujo’ que promete purificar.
Não sabia, mas viajava num jatinho turbinado no caixa dois das propinas mediadas por um ex-diretor da Petrobrás, demitido pela ‘gerentona’ Dilma Rousseff. Assim como se aninha na confortável tutela de uma herdeira do banco Itaú; e aquiesce às bordoadas eletrônicas do impoluto Silas Malafaia; como tampouco estranha a ecumênica adesão dos apetites de um Roberto Freire, Serra, Bornhausen e sucedâneos.
Não importa.
A seita dos bons inscreve-se na constelação das verdades transcendentais. Marina tem seu projeto blindado à crítica nos seus próprios termos e consequências.
A infalibilidade de sua roleta bíblica mimetiza na esfera divina a auto- regulação evocada pelos livres mercados na realidade profana.
Nela se incorporam as duas coisas para formar uma esférica camuflagem do obscurantismo com o rentismo.
Não se escapa desse ardil apenas com a listagem de obras na publicidade eleitoral.
Quando Lula sacode a propaganda do PT pelos ombros e diz que é preciso politizar a disputa, demarcar o campo de classe, é porque sabe que esse é o ponto em torno do qual a natureza omnívora e messiânica da ‘arca dos bons’ se revela.
É a chance de abrir um rombo no casco na arca de Noé da candidata eólica.
Mas encerra também uma advertência ao PT.
Minimizar o campo de classe é desintegrar-se em uma gelatina a partir da qual ‘peão vota em patrão’.
É facultar a Marina terceirizar a moeda, o juro, o câmbio e o salário aos mercados como se fosse uma operação épica de assepsia no intervencionismo sujo, corrupto -- petista.
Marina é a luva descartável de uma higienização antipopular promovida periodicamente pelas elites locais e estrangeiras na história do país.
Sua arca reúne espécies da cepa de 32, de 54, de 56, de 64, de 69, de 2005 ... mas ela finge não saber disso.
Denunciá-lo não é a política do medo, mas a da verdade histórica, como afirmou a Presidenta Dilma.
O PT nasceu abrigado na certeza de que o socialismo é a democracia levada às últimas consequências.
Emparedado entre a queda do muro de Berlim, e a hegemonia do neoliberalismo, apegou-se à fresta que hoje se revela uma imensa avenida na crise conjunta da representação política e de estagnação capitalista em todas as latitudes.
A meca de Marina, ao contrário, é levar a financeirização da sociedade às últimas consequências.
A ambientalista direcionou sua trajetória à boca de um funil do qual muitos emergiram do outro lado na forma de um resíduo histórico.
Quer levar o Brasil nessa aventura.
São projetos ontologicamente antagônicos nos seus meios e fins.
Como então as propagandas e práticas eleitorais podem se assemelhar, ‘ a ponto de peão votar em patrão’?
A resposta que Lula cobra do PT a menos de 30 dias das urnas não vai apenas definir a vitória ou a derrota em 4 e 26 de outubro.
A resposta cobrada tem um tempo histórico de maturação mais longo e convoca um vigor de engajamento mais denso.
A resposta vai definir se o PT continuará ou não a ser a viga estruturante do campo progressista brasileiro a partir de 2015.
Dentro ou fora do Planalto.
A ver.
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