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14/11/2015
Colheita macabra
Por Fernando Brito
Não conheço a Paris de hoje, nunca pus os pés por lá. Mas, pela dor, acabamos todos, neste instante ali bem perto, diante de tamanho morticínio.
Mais ainda porque, se não pus os pés, levou-se à velha Paris a minha cabeça, conduzida pela mão apaixonada de Victor Hugo, por tudo o que a cidade significou na história humana, e a quem ele declarava seu amor incondicional:
“Pode-se dizer que Paris tem as
virtudes do cavalheiro: é sem medo e sem censura. Sem medo, ele o prova
diante do inimigo.Sem mancha, prova-o diante da história. Teve, por
vezes, a cólera: será que o céu não tem vento? Como os grandes ventos,
as cóleras de Paris são saneadoras. Depois do 14 de julho, não há mais
Bastilha; depois do 10 de agosto (de 1972, a tomada popular do palácio real), não há mais realeza. Tempestades justificadas pela amplificação do azul.”
O presidente François Hollande acaba de responsabilizar o “Estado Islâmico” – repito, não é Estado, nem Islâmico – pelo ato de barbárie. Não basta prometer resposta implacável, porque, para ser implacável mesmo, há de ser lúcida e não uma primária “vingança”.
Pois é preciso entender o que cria esta monstruosidade.
E me socorro de novo do grande herói francês, sobre o que ele dizia do fundamentalismo religioso, para pensar:
Aqui, uma pergunta. Será que estes
homens são maus? Não. Que é que eles são, pois? Imbecis. Ser feroz não é
difícil, para isto basta a imbecilidade. Então, será que nasceram imbecis? De forma alguma. Algo os tornou assim. Acabamos de dizê-lo. Embrutecer é uma arte.
Daquilo sobrou pouco: uma chaga remanescente, dolorosa, a dos palestinos, a quem nunca se permitiu deixar rebrotar na terra as raízes.
Aqueles povos foram aprendendo, com seus erros, acertos e distrofias, a viver sendo de novo seus próprios senhores. Fizeram ditadores? Sim, os fizeram, como aqui os tivemos e nunca nos enviaram tropas para libertar-nos e dar-nos a democracia. Ao contrário, deram alfanges aos que quiseram desabrochar as primaveras que começamos a descobrir.
A primeira década e meia do século 21, ao contrário, tem sido a da intervenção, a da ocupação, o das bombas e mísseis “inteligentes” que iam exterminar as imaginárias “armas de destruição em massa”, mas que atingiram em cheio as estruturas de poder e de convívio – torto, defeituoso, autoritário – que tinham minimamente organizado.
Nunca hesitaram, para isso, em valer-se da fé obscura e fanática. Criaram os Bin Laden e os grupos que virariam o Isis. Não raro, até, lhes enviaram dinheiro, armas e até mesmo alguns de seus cidadãos mais tresloucados, ávidos por viver uma espécie de sacerdócio bélico.
A colheita macabra disso é a noite de ontem em Paris, como outras safras já se colheram em Nova York e nos céus do Sinai.
Pagaram-na com a vida os jovens de Paris. Paga-la-ão em vida os milhões de refugiados com que a guerra que o Ocidente moveu em seus países fez abarrotar a Europa, contra os quais vão se elevar os níveis de xenofobia, discriminação e maus tratos.
Para ficarem em paz talvez nem lhes adiante fazer como seus antepassados tiveram de fazer na Idade Média, tornando-se cristão novos: abjurar da fé, da cultura, da língua, como fizeram os meus Nogueira, os seus Pereira, Carneiro, Lobo, Moreira.
Porque no Ocidente “civilizado” também espalharam-se os esporos do fundamentalismo, que é o fascismo, o ódio ao diferente, o direito auto-concedido de achar-se o puro e aos demais impuros, infiéis.
Semeou-se o ódio, revolveu-se o chão com guerras, brotou o ressentimento, floresceu a insânia e e nos nauseia o cheiro fétido da flor do terror.
Não há caminho para a paz que não seja o do respeito à autodeterminação dos povos.
Todos os outros levam à violência e a violência é uma arma que acaba por ferir a mão de quem a brande.
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