27/07/2016
Ênfase nas relações Sul-Sul é legado, não "blá-blá-blá"
Quem critica essa política pretende nos devolver ao tempo em que Brasil e Argentina rivalizavam para saber quem era mais amigo de Tio Sam
Carta Capital —
publicado
27/07/2016 01h39
Jean-Marc Ferré
Quando
a Comissão dos Direitos Humanos, ao acolher uma proposta brasileira,
estabeleceu que “o racismo é incompatível com a democracia”, os
poderosos ficaram muito preocupados
por Celso Amorim
Política externa,
como toda política, implica conversa. Conceitos e ideias se expressam
por palavras. Diferentemente do que pensam alguns, palavras têm
consequências. Boas ou más. Podem apontar na direção de um mundo melhor
ou semear destruição. Paz e Desenvolvimento dão sentido à Diplomacia,
diferenciando-a do governo sem propósito ético, que Santo Agostinho
comparava a um bando de salteadores.
Até neologismos têm força. Brexit só foi entendida, até pelos que a propuseram, em toda sua extensão ex-post.
“Flexibilização”, um neologismo dicionarizado, aparentemente de sentido
positivo, pode vir a se revelar nefasto, quando aplicado ao Mercosul e
à integração, levando-nos de volta à era em que Brasil e Argentina
rivalizavam para saber quem era o “melhor amigo” da grande potência.
Uma das resoluções mais importantes propostas pelo Brasil
na Comissão (hoje Conselho) de Direitos Humanos, no limiar do novo
milênio, girou em torno de duas palavras. Causou apreensão dos poderosos
e arrepiou sensibilidades dos privilegiados. Não envolvia, em si mesma,
qualquer ação prática. Limitava-se a estabelecer que “o racismo é
incompatível com a democracia”.
A mera constatação, de resto óbvia, surpreendeu algumas
delegações, acostumadas a ver os países em desenvolvimento como
potenciais alvos de críticas e condenações e não como autores de
denúncias, ainda que sem destinatário explícito. Para agravar o
incômodo, a proposta foi feita sob o capítulo dos direitos civis e
políticos, considerado como chasse gardée dos países ocidentais.
Variações por vezes sutis entre palavras
podem alterar profundamente a realidade. Quando a “Declaração de Doha
sobre TRIPS e Saúde” (TRIPS é o acrônimo, em inglês, para o acordo sobre
propriedade intelectual da Rodada Uruguai, que criou a OMC) foi
negociada, em 2001, tomou-se enorme cuidado para assegurar que as
“flexibilidades” contidas no acordo fossem preservadas e que
dispositivos que pudessem conter ambiguidades fossem interpretados de
modo favorável a políticas que visavam proteger a saúde da população,
acima de interesses meramente comerciais.
A Declaração afirma, por exemplo, que TRIPS “pode e deve” (can and should)
ser lido como autorizando medidas que garantam o acesso a medicamentos
“para todos” (ou “todas”). Já o texto da Parceria Transpacífica (TPP),
um dos muitos que despertam a cobiça e as ilusões da nossa elite, troca o
termo afirmativo can pelo dubitativo may, em um jogo de
palavras que, potencialmente, colocaria por terra, caso o Brasil viesse a
aderir a tal acordo (ou outro semelhante), nossa política de patentes e
medicamentos genéricos, posta em prática pelo governo Cardoso e
aprofundada nos governos Lula e Dilma.
Pelo que se lê por aí, a ênfase nas relações Sul-Sul faria
igualmente parte do “blá-blá-blá”, que teria caracterizado a política
externa dos “governos petistas”, assim definidos como se deles não
tivessem feito parte personalidades hoje no poder, a começar pelo
presidente em exercício. O tema torna-se mais relevante à medida que se
aproxima o 40º aniversário da Conferência de Buenos Aires do G-77, cujo
documento final tratou, pela primeira vez de modo operativo, da
cooperação entre países em desenvolvimento.
Nos muitos eventos de que tenho
participado, nas áreas da saúde, do trabalho ou, mais amplamente, das
relações internacionais, tenho ouvido com frequência expressões de
gratidão pelo impulso dado pelo Brasil a esse tipo de cooperação.
E não apenas com declarações retóricas,
mas por meio de ações práticas, como o estabelecimento de fábrica de
elementos antirretrovirais em Moçambique, o apoio a uma fazenda-modelo
para o aprimoramento de espécies de algodão no Mali (como parte de um
projeto que abrange quatro outros países muito pobres da África
Ocidental), o financiamento de um centro esportivo na Palestina,
juntamente com os outros membros do fórum IBAS (Índia e África do Sul) e
a criação de oficinas para treinamento profissional, com ajuda do
Senai, no Timor-Leste, no Haiti e em outros países da América Latina,
Caribe e da África.
Recentemente, em um evento desse tipo,
encontrei estudiosos, professores, funcionários e sindicalistas (no caso
do Brasil, da CUT, da Força Sindical e da UGT) de mais de 50 países. Em
ambiente de paz e cooperação, técnicos de governos e elementos da
sociedade civil discutiam como levar adiante projetos que envolvem
aprendizado recíproco, e que, entre outras coisas, servem para aproximar
povos de diferentes religiões, línguas e etnias.
Em outro diapasão, jamais se apagará da minha memória a
expressão de um homem de meia-idade, que encontrei no pátio da famosa
Mesquita Omíada de Damasco – a mesma que por um de seus minaretes o
profeta Jesus (ou Issa) descerá à Terra no Dia do Juízo Final – pouco
tempo após a assinatura da Declaração de Teerã. Acompanhado do filho,
aquele indivíduo, que poderia ser um artesão ou um pequeno comerciante,
parou diante de mim e disse, em um inglês pouco fluente: “Ministro?
Brasil? Obrigado! Sou iraniano!”
Para aquelas pessoas cujas vidas foram salvas – ou cuja
dignidade foi recuperada – mediante ações como as acima referidas, a
construção de um mundo mais humano e solidário, em que o legítimo
interesse nacional de cada um não implica hostilidade ou mesmo
indiferença em relação ao próximo, não é mera narrativa vazia.
*Texto publicado originalmente na edição 911 de CartaCapital, com o título "Sobre 'blá-blá-blás'”
.
Nenhum comentário :
Postar um comentário
Veja aqui o que não aparece no PIG - Partido da Imprensa Golpista