28/08/2013
A inocência provada de Pizzolato
Se toda pessoa é inocente até que se prove o contrário, Pizzolato fez mais do que isso. Provou sua inocência
Paulo Moreira Leite
Nos próximos dias, o STF irá examinar os recursos de Henrique Pizzolato, o antigo diretor do Banco do Brasil condenado a 12 anos. Não se sabe a data certa porque a agenda de cada dia costuma ser anunciada de modo repentino e está sujeita a mudanças inesperadas e imprevisíveis.
É uma situação inexplicável, que prejudica os réus. Muitas vezes,
seus recursos são julgados sem que seus advogados possam estar
presentes.
Quem costuma ler este espaço conhece minha opinião.
Estou convencido de que, como vários réus, Pizzolato (o presidente
do tribunal Ayres Britto o chamou de ”Pitzolato,” talvez para dar um
toque italianado ao ambiente) foi condenado de forma absurda, contra
toda lógica e contra todos os indícios materiais.
Explico. O drama não é que, como acontece com muitos réus, não surgiram provas para culpar Pizzolato. Havia provas sim.
Mas elas demonstram sua inocência.
Se toda pessoa é inocente até que se prove o contrário, com se
aprende nos cursos preparatórios de Direito, Pizzolato fez mais do que
isso. Provou sua inocência.
Sei que é difícil ler uma afirmação tão categórica sem desconfiar
da sanidade de quem escreveu. Peço ao leitor que tenha um pouco de
paciência e acompanhe este texto até o final. Muitas vezes as pessoas só
conseguem enxergar aquilo que querem ver.
Tivemos um exemplo recente. Não foi assim que ontem a inesquecível
jornalista Micheline Borges duvidou que aquelas mulheres negras que vêm
de Cuba para participar dos Mais Médicos pudessem ser médicas, pois têm
“cara de empregada doméstica”? “Médico tem cara de médico, se impõe a
partir da aparência... Coitada da nossa população,” escreveu Micheline,
traduzindo, com sinceridade bruta, 500 anos de preconceito que nossos
observadores mais cultos e bem colocados nos jornais e na TV exploram
politicamente, de forma vergonhosa, mas com cuidado para não dar na
vista.
Pois é. O caso é que Pizzolato, em termos penais, não tem “cara de médico.”
Pizzolato foi condenado porque a acusação disse que era
“pessoalmente” responsável pelo esquema. Ele é que teria comandado um
suposto desvio de R$ 73,8 milhões para o PT. Definia antecipações para a
agencia DNA, que mandava o dinheiro para o PT. Segundo os ministros que
o condenaram, “Pitzolato” (aos poucos a gente vê o tipo de associação
que se pode fazer com italianizações, não é mesmo? Seria uma associação
de italianos com a máfia?) manipulava recursos públicos, que “pertenciam
ao Banco do Brasil”, usando a empresa Visanet.
Tudo isso é falso, errado, e não para em pé. Mas está lá, no tribunal, e pode levar Pitzolato para a cadeia.
Vamos devagar para explicar direito. Está provado nos autos da ação
penal que Pitzolato (será que estavam falando em pizza, sinônimo de
impunidade?) não assinou nenhuma das notas que determinaram os
pagamentos de R$ 73,8 milhões. Eram quatro notas, de valores variados.
Nenhuma tem seu autógrafo.
Duas notas foram assinados por um diretor chamado Leo Batista de
Oliveira. Outras duas, por Douglas Macedo. Não há a assinatura de
Pitzolato nos documentos. Nenhuma vez.
Descobriu-se, apenas em 2012, em
pleno julgamento, que eles estavam sendo investigados secretamente, em
outro inquérito que ninguém sabe que rumo tomou porque, até hoje,
continua secreto.
Ao menos por enquanto, aqueles que a justo título eram os únicos
que poderiam ser chamados de responsáveis “pessoalmente” pelo pagamento,
não correm o risco de enfrentar uma pena de prisão prolongada, como
Pitzolato pode ter de enfrentar, caso não seja possível, nessa
dificílima, duríssima fase de recursos, convencer ministros a
reexaminaras “contradições, omissões e obscuridades” do acordão que
resume a condenação.
Não acho que esses diretores deveriam ser julgados ou condenados no
lugar de Pitzolato. Como você verá a seguir, eles também seriam vítimas
de um erro. Mas, na lógica do julgamento, ocorreu uma situação
estranhíssima, inexplicável.
Os diretores que deixaram a assinatura naquelas notas que, na visão
do STF, constituem a prova contra Pizzolato, tiveram a sombra e água
fresca. Nem a turma do mensalão PSDB-MG foi tão bem tratada.
Se autografaram pagamentos que eram criminosos, como diz a
denúncia, no mínimo deveriam ter sido julgados como cúmplices,
co-autores, ou coisa semelhante. Poderiam demonstrar, se fosse o caso,
que eram simples laranjas de um super-poderoso Pizzolato, que agia de
modo solerte nos bastidores. Não aconteceu uma coisa nem outra. Como uma
pessoa pode ser "pessoalmente" responsável nessas condições?
O grave é que isso está lá, nos autos. Ninguém precisa “investigar”
para saber quem assinou as notas. Os dois estão um inquérito à parte,
quando um calouro da Academia de Polícia sabe que não é possível definir
responsabilidades de um sem avaliar a de outro e vice-versa. Temos,
então, uma questão básica, elementar, que é chocante. Condena-se o único
diretor contra o qual não há provas nem atos de ofício sobre sua
responsabilidade.
Vamos prosseguir.
Pizzolato foi condenado por crime de peculato, porque sua atividade envolve, supostamente, “dinheiro público.”
Seis meses depois da entrevista na qual Roberto Jefferson falou em
“mensalão”, uma auditoria assinada por 25 auditores do Banco do Brasil
mostrou que que os recursos usados pela empresa Visanet eram privados
“não pertencendo os mesmos ao BB investimentos nem ao Banco do Brasil.”
A auditoria mostrou inclusive que o dinheiro sequer transitava pelo
Banco do Brasil. Ficava numa conta da Visanet e, quando era o caso de
usá-lo em campanha de publicidade do cartão, um diretor, previamente
escolhido pelo Banco – aqueles dois nomes já citados aqui -- assinava
uma nota autorizando o pagamento para a agencia de Marcos Valério, DNA.
Em seu depoimento como testemunha, o auditor chefe do Banco
confirmou o que disse. Deu explicações suplementares, sanou todas as
dúvidas. Nenhuma linha de seu trabalho foi contestada pela acusação.
Nenhum número. Pergunto assim quem deveria ser levado em conta: o
auditor, que conhece cada centímetro quadrado do banco, ou o ministério
público, envolvido em demonstrar “o maior escândalo da história”?
No julgamento, quando o advogado de Pizzolato, Sávio Lobato,
terminou a defesa, o relator Joaquim Barbosa fez uma interpelação sobre a
natureza dos recursos. Joaquim queria saber se eram públicos ou
privados. Sávio explicou, didaticamente, como a coisa funciona. Toda vez
uma pessoa faz uma pequena compra com o cartão, paga uma porcentagem à
Visa. Esta retira uma fração deste dinheiro recolhido para formar o
fundo Visanet. Com esses recursos, recolhidos de quem tem o próprio
cartão, o Fundo financia campanhas de seus quase 30 bancos associados,
entre eles o Banco do Brasil. O youtube tem a íntegra das alegações de
Sávio Lobato no STF.
Ali se vê o momento em que o advogado dá explicações ao relator. Há
uma certa tensão. Mas o argumento fica claro. Como cliente associado a
Visa, o Banco do Brasil, através daqueles diretores que não eram
Pizzolato, autorizava o Fundo a pagar agências que faziam campanhas.
Nesta divisão do trabalho, cada banco cuidada da publicidade, com
suas agências, seu marketing. O Fundo pagava, com o dinheiro recolhido a
partir de cada compra de seus clientes.
Pitzolato também foi condenado numa discussão falsa, em torno do
Bonus de Volume. O STF considerou que ele tinha o dever de obrigar a DNA
a devolver ao banco o chamado BV, que é uma retorno que as agências
recebem de seus anunciantes em função de campanhas realizadas. Os juízes
consideram que essa atitude de Pizzolato também contribuiu no desvio de
recursos.
Chega a ser constrangedor porque revela desconhecimento da questão.
Na fase de interrogatórios e testemunhos, a defesa convocou um
executivo da TV Globo, a maior empresa de comunicações do país, para
explicar o que vem a ser o BV. Num depoimento de mais de uma hora, que
não foi contestado em nenhum momento por membros do ministério público,
Otavio Florisbal, na época o principal executivo da emissora, explicou
claramente o que é o Bonus, como é pago, porque não é nem deve ser
devolvido aos anunciantes, devendo ficar com a agência. A defesa também
lembrou que uma decisão recente do Tribunal de Contas da União legalizou
o uso do BV, dirimindo dúvidas que poderiam haver. A realidade é que,
além do setor privado, estatais e empresas mistas adotam o mesmo
procedimento. Seriam punidas pelo mercado se não agissem assim.
Se o Banco do Brasil errou, por que os outros não foram
investigados nem condenados? Não haveria aí um crime de
responsabilidade, no mínimo?
Outra acusação é que Pizzolato, como diretor de marketing do Banco,
não acompanhou nem fiscalizou devidamente o trabalho da DNA. Na
definição de funções, esse trabalho cabia ao gerente executivo, Claudio
Vasconcelos, outro que não foi incomodado pela ação penal 470.
No julgamento, o promotor Roberto Gurgel citou depoimento de uma
testemunha que afirmou que as campanhas da DNA eram uma farsa, sugerindo
que não passava de uma cobertura para se enviar R$ 73 milhões para o
PT.
Rastreando as contas da testemunha a Polícia Federal colocou sua
credibilidade em dúvida. Descobriu um deposito indevido, enviado por
outra agência.
A denúncia de que as campanhas eram uma fraude ajudam a dar um
número para o mensalão – teria custado R$ 73,8 milhões – mas isso não se
sustenta. É tanto dinheiro que não faz nexo.
Qualquer pessoa que já teve de enfrentar um briga por seus direitos
junto a uma empresa de cartão de crédito sabe que elas não perdoam um
centavo em suas cobranças, de taxas que não se entende nem elas
explicam. Para se acreditar num golpe de 73,8 milhões, às claras, com
assinatura, é preciso acreditar num disparate: um banco de malucos
embolsa R$ 73,8 milhões de uma multinacional como a Visa e nada lhes
acontece.
E se esse dinheiro sumiu dos cofres do Banco do Brasil, como quer o
STF, é de se perguntar por que, dez anos depois, nenhum presidente da
instituição foi sequer chamado a prestar contas. Nem é preciso apelar
para a teoria do domínio do fato, neste caso, para fazer um chamado as
responsabilidades, vamos combinar.
Também foi possível demonstrar, até com ajuda de uma auditoria
privada, que as campanhas foram realizadas. Há fotos de eventos, imagens
e assim por diante. Também há notas de pagamentos, para empresas com
CNPJ, endereço conhecido. Rastreando notas e pagamentos de serviços de
quase uma década, DNA conseguiu comprovar, nota por nota, num esforço
gigantesco de defesa, 85% dos gastos – porcentagem notável, considerando
o tempo passado e a imensa quantidade de fornecedores, clientes e
empresas envolvidas.
Cabe lembrar, contudo, que mesmo que alguma irregularidade ficasse
demonstrada, ela envolveria recursos privados, recolhidos pela Visanet.
Não era dinheiro do Banco do Brasil.
Uma acusação acompanha Pizzolato desde o início do mensalão. Ele
recebeu um envelope com R$ 326 000 retirados do Banco Rural. Pizzolato
alega que o dinheiro era do PT. O relator Joaquim Barbosa sustentou que
foi pagamento de propina por parte do esquema.
Você pode duvidar de um e de outro e eu até admito que, conhecendo
os maus costumes do mundo político, é difícil aceitar o argumento de
Pizzolato. Ninguém quer se sentir ingênuo num universo de espertos,
vamos combinar.
O fato é que a Receita quebrou seu sigilo fiscal e sua conta
bancaria e não encontrou traço desses recursos. Ele comprou um
apartamento de R$ 400 000 na mesma época, o que gerou suspeitas. Mas
provou usou recursos acumulados em sua carreira de executivo de banco,
com investimentos declarados honestamente à receita.
Seja como for, a acusação não fez sua parte. Não rastreou o
dinheiro a ponto de provar que ele foi embolsado por Pizzolato. Votou-se
numa dedução, numa suspeita, numa probabilidade, altíssima, conforme
determinada visão.
Mas fica uma dúvida básica. Para que pagar propina a um diretor que não tinha poder de liberar um centavo?
Como lembrou um economista aqui no Facebook, Roberto Anau, com este
açodamento o PT acusou o caseiro Francenildo de embolsar $$$ para
acusar Antonio Palocci.
Quem acha que é sempre esperto poderia responder esta e outras
perguntas. E quem sabe concluir que querem que faça o papel de bobo.
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Paulo Moreira Leite. Diretor da Sucursal da ISTOÉ em
Brasília, é autor de "A Outra História do Mensalão". Foi correspondente
em Paris e Washington e ocupou postos de direção na VEJA e na Época.
Também escreveu "A Mulher que Era o Outro General da Casa".
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