quarta-feira, 17 de abril de 2013

Contraponto 10.946 - "Venezuela: autocrítica e história"

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17/04/2013

Venezuela: autocrítica e história

 

Da Carta Maior - 16/04/2013

 
 Saul Leblon
 
A vitória apertada de Maduro na Venezuela teve o efeito de uma ducha fria sobre a consciência progressista continental.

Não se deve fechar os olhos às falhas evidenciadas pelo safanão das urnas.
É preciso despir a soberba, mas sem troca-la pelo diagnóstico circular da ‘barafunda chavista’.

A autocrítica consequente aponta caminhos sem abstrair a história.

Os despachos de Gilberto Maringoni e Vinicius Mansur, direto de Caracas, trazem uma informação que serve ao mesmo tempo de alívio e alerta para a verdadeira natureza dos desafios que se colocam ao governo Maduro.

O problema da Venezuela, ao contrário da Argentina, por exemplo, não é falta de divisas.

O país exportou US$ 97 bilhões, em 2012, contra importações de US$ 59 bi.

O saldo de US$ 38 bi foi quase duas vezes e meia superior ao do Brasil.

O ponto é que o país não conseguiu transformar uma economia superavitária em sistema produtivo eficiente, capaz de atender a boa parte da demanda, gerar empregos de qualidade, produzir receita fiscal e maior equilíbrio de preços.

Celso Furtado dizia sobre a própria Venezuela nos anos 50: ‘a pior coisa que pode acontecer na história de um país é uma chuva de dinheiro’. Antecipou-se assim o patrono dos economistas brasileiros ao conceito de ‘doença holandesa’, qualificado mais tarde.

Chove dinheiro na Venezuela há décadas.

O motivo é sabido: o petróleo abundante reduziu a economia a um entreposto de embarques de óleo e desembarque de tudo o mais que uma nação consome.

A oligarquia apropriava-se dos frutos dessa baldeação estéril, internalizando um padrão de vida dissociado da pobreza da maioria do povo.

Grosseiramente, pode-se dizer que o chavismo inverteu essa relação.

Mas não conseguiu, ainda, mudar a dinâmica macroeconômica.

Parte expressiva da receita da estatal Petroleos de Venezuela (PDVSA) passou a financiar programas sociais, planos habitacionais, subsídios e serviços públicos antes inexistentes, ou de precariedade imaginável.

O que muitas vezes se denomina ‘dilapidação da PDVSA’ consiste nessa inversão de circuito de uma riqueza natural que antes beneficiava poucos; agora passou a irrigar a vida da maioria.

Entre 40% e 60% da receita do Estado venezuelano dependem do petróleo e da estatal PDVSA, que tem participação pelo menos 50% em todos os contratos de joint-venture.

A dependência do Estado venezuelano em relação a PDVSA é preocupante, mas não é inédita.

Cerca de 50% da receita da Rússia vem do setor petrolífero. No México, a Pemex garante 30% do caixa do Estado.

O orçamento da Venezuela é estruturado com um preço de referência do petróleo sempre subestimado, com grande margem de segurança.

Um imposto criado em 2008 captura até 60% do lucro extraordinário obtido quando o preço do barril ultrapassa os US$ 70 , por exemplo.

Esse plus não entra no bolo de recursos partilhados com estados e municípios, uma vez que a petroleira não paga imposto sobre ele, reduzindo a receita fiscal.

O dinheiro extra, praticamente um orçamento paralelo, é destinado diretamente aos programas sociais.

Há problemas de transparência, mas eles não invalidam o mecanismo.

Distorções podem ser superadas com a criação de um conselho suprapartidário e o escrutínio do congresso para os gastos. Um pouco como o Brasil modelou o fundo do pré-sal.

O fato é que o engrenagem funcionou.

Tanto assim que nem mesmo o conservadorismo nega os avanços sociais registrados desde 1999.

O caprilismo, a exemplo de assemelhados brasileiros, assegura: ‘o que é bom será mantido – mas é possível fazer mais e melhor’.

A fórmula esperta embalou a campanha oposicionista nas eleições do último dia 14.

Quem não quer? Ficar com o que dá certo, descartar equívocos e ter mais?

A realidade, essa bruxa má, complica os contos de fadas.

As primeiras descobertas de petróleo, no início do século passado, rapidamente tornariam a Venezuela um prato suculento aos olhos do apetite estrangeiro.

Por volta da 1ª Guerra mundial, o país já se destacava como o maior exportador de petróleo do mundo. Hoje está entre as maiores reservas conhecidas do planeta.

Até a chegada de Chávez ao poder, em 1998, o circuito dessa riqueza irrigou o metabolismo seleto de bolsos e contas de uma minoria local e forânea.

A elite venezuelana dominou o país ao longo de décadas; nunca fez um esforço significativo de convergência incremental da riqueza e das oportunidades.

Acusa-se o chavismo de não ter reduzido essa petrodependência em 14 anos.

A nacionalização da PDVSA, iniciada em 2002, só se concluiu em 2007.

Antecedida de cinco anos de uma sangrenta disputa com interesses que hoje embalam Capriles.

A emergência social e política permanente condicionou a velocidade dos programas e investimentos sociais à frente do fomento à produção.

O indutor das circunstâncias deu vida a um pujante mercado de consumo de massa, parte do qual, possivelmente, puniu o seu criador nas urnas.

O poder de compra venezuelano na faixa de renda até dois salários mínimos (R$ 1300,00) é um dos maiores da América Latina.

O país erradicou o analfabetismo; tem hoje a 5ª maior população universitária do planeta.

Uma fatia dos votos adicionados à base natural de Capriles no dia 14 talvez advenha desses novos sujeitos políticos. Descontentes com a velocidade insatisfatória das mudanças estruturais, a um custo sabido em inflação, escassez, empregos pouco atraentes, corporativismos etc.

Economistas do Ipea e da Unila (leia reportagem) indicam que dezenas de iniciativas estão em andamento para diversificar a estrutura produtiva nacional, com a participação do Estado, do setor privado e de empresas mistas com o Irã, China, Rússia e Índia.

É previsível que a gestão dessa corrida contra o tempo deixe a desejar num país jejuno em tradição produtiva.

Enquanto viveu, Chávez foi capaz de harmonizar esse desencontro de tempos históricos com o poder de seu carisma, sua fala fluente e popular.

Sua morte retirou uma rolha de contenção despejando no colo do chavismo um jorro de expectativas e urgências conflitantes.

É nesse trapézio sem rede que Maduro tenta se equilibrar ancorado numa pequena vantagem eleitoral, contestada por uma convergência de interesses de motivações diversas e até difusas.

O terreno nunca foi tão desfavorável ao governo. E nunca se exigiu tanto em poder de superação de um processo social transformador.

As críticas de esquerda às imperfeições do chavismo, ao abuso da oratória, à corrupção e à ineficiência por certo encontram respaldo na realidade.

Abstrair o peso da história, porém, pode sugerir que os homens tem o poder de comandá-la, sem levar em conta as circunstâncias.

Esse pecado seria fatal nesse momento.

As circunstancias indicam a necessidade de Maduro negociar rapidamente com os setores mais receptivos fora do seu arco de forças. E acelerar planos de cooperação e parceria com quem pode e deve ajuda-lo na velocidade requerida.

É o caso do Brasil.

Sem ampliar essa ossatura política, Maduro será um alvo estático entregue à pontaria incansável da artilharia local e internacional.

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