terça-feira, 1 de outubro de 2013

Contraponto 12.334 - "Patifaria moral"

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01/10/2013 
Patifaria moral
 

A Constituição diz que a saúde é um direito de todos e um dever do Estado. Belas palavras sabotadas cotidianamente

Paulo Moreira Leite


Nunca pensei que se chegaria a fase atual da evolução da humanidade. Para quem gosta de imagens bíblicas, assistimos a um desfile dos Cavaleiros do Apocalipse.

Entre a saúde e a doença, prefere-se a morte em tom de celebração, indiferença e fatalidade. Seria possível combater doenças e epidemias, iniciativas que, em última análise, permitem salvar vidas.

Também seria possível fazer tratamentos preventivos. Mas evita-se aquilo que a medicina permite e o progresso tecnológico tornou possível porque não se quer atrapalhar os ganhos da medicina privada em todas as suas formas.

Brasil e Estados Unidos assistem, hoje, a dois casos exemplares dessa situação especialmente mórbida.

No Brasil, o programa Mais Médicos encontra apoio decidido da população e oposição absoluta dos empresários da medicina e das entidades da categoria.

O governo consegue trazer médicos estrangeiros, dispostos a assumir vagas que os doutores brasileiros não querem ocupar, mas enfrentam a burocracia, a sabotagem e o espírito corporativo para tentar impedir que possam atuar em regiões carentes. Com apoio resoluto de uma oposição que torce para que toda iniciativa que possa auxiliar a reeleição de Dilma Rousseff venha dar errado, custe o que custar, o que se quer, nos próximos meses, é criar um ambiente de hostilidade e agressão para convencer possíveis candidatos a desistir de mudar-se para o Brasil. Num prazo mais longo, o plano é conseguir, na Justiça, sentenças que mandem os estrangeiros de volta, num ambiente de tumulto e descrédito.

Nos Estados Unidos, país que abriga a maior economia do mundo, chegou-se a um impasse inacreditável. Para manter uma política de austeridade econômica, a oposição republicana faz uma chantagem. Só autoriza a contratação de novos financiamentos, indispensáveis para o funcionamento cotidiano da máquina do Estado, se o governo de Barack Obama suspender a reforma de saúde por um ano. Com um descaramento que talvez se possa atribuir a algum aspecto da franqueza anglo-saxã, também aqui se tenta obrigar a população mais pobre a arcar com o peso principal das guerras eleitorais.

Não somos ingênuos, mas é difícil habituar-se à noção de que o lucro privado deve ter prioridade sobre todas as coisas. Vidas humanas não podem ser oferecidas nem negociadas como se fossem carcaças num açougue.

Desde quando o homem saiu das cavernas, nós sabemos que o interesse material alimenta elementos vitais de toda sociedade e até pode contribuir para o progresso da maioria das pessoas. Não é preciso teorizar a respeito. Mas estamos falando de outra coisa.

Homens e mulheres que têm direito, como eu e você, de usufruir, ao menos parcialmente, dos avanços da medicina são excluídos de ambulatórios, hospitais e consultórios por uma razão muito simples. São cidadãos incapazes de gerar lucro para quem administra a saúde humana. A doença deles não é uma mercadoria compensadora nem pode ser lucrativa.
Talvez porque não tenham recursos para pagar um plano médico. Ou porque não tenham meios para deduzir, mais tarde, suas despesas da conta do imposto de renda a pagar.

Diferentes em vários aspectos, os espetáculos nos EUA e no Brasil são idênticos num ponto essencial. No Brasil e nos Estados Unidos, querem impedir que os mais pobres possam ir ao médico. Veja bem. Não é que não existam recursos para levar essas pessoas a uma consulta. Por caminhos diversos, os governos dos dois países têm meios de fornecer, de forma direta ou indireta, os recursos necessários.

O que se quer é impedir de todas as maneiras que os pobres façam uma chapa de pulmão para saber o que acontece quando estão tossindo demais, ou possam se consultar com um especialista quando enfrentam dores inesperadas e permanentes na região do abdômen, ou que tenham direito a prevenir-se de um enfarto caso sejam portadores de doenças cardiovasculares.

Essa é a patifaria moral que se exibe cotidianamente diante de nossos olhos.
Uma sociedade que sacrifica vidas humanas sem necessidade, sem o mais leve sentimento de solidariedade e sequer compaixão, pode parecer sofisticada nos bens de consumo que adquire, nos livros e espetáculos que frequenta, quem sabe nas roupas que veste e nos automóveis que dirige.

Mas é mórbida em seus valores fundamentais. Assume e reproduz noções que implicam na ampliação da miséria e da desigualdade entre os homens e mulheres. Mantém-se indiferente diante da desgraça e da tragédia dos mais fracos. Tolera assassinatos sociais – é disso que se trata, no fim das contas – como se fossem acidentes naturais.

Não é, contudo, uma articulação espontânea. Por vias diversas, tivemos iniciativas que foram capazes de atingir a soberania popular nos negócios do Estado.

O limite histórico de gastos imposto ao Estado americano é uma vitória que procura transformar a austeridade, tão cara ao setor financeiro, no principio básico das políticas públicas. Mesmo que você tenha um presidente eleito, com mandato para zelar pelas necessidades da população, ele não dispõe de autonomia para definir gastos e financiamentos, questões elementares na definição de qualquer governo. Estará sempre sujeito a limites e chantagens da oposição.

No Brasil, temos uma constituição que diz que a saúde é um direito de todos e um dever do Estado. São belas palavras, que têm sido sabotadas cotidianamente pelo esforço cotidiano de cortar recursos para a saúde pública e privilegiar empresas privadas de saúde. 


Paulo Moreira Leite. Diretor da Sucursal da ISTOÉ em Brasília, é autor de "A Outra História do Mensalão". Foi correspondente em Paris e Washington e ocupou postos de direção na VEJA e na Época. Também escreveu "A Mulher que Era o Outro General da Casa".  
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