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06/05/2015
Um dos maiores penalistas do mundo chama Lava Jato de golpe de Estado
Cafezinho - postado em maio 5th, 2015
Foto: Agência Brasil.
‘A diferença é que a operação ‘Mãos Limpas’ não visava um golpe de Estado’
Juristas brasileiros enviaram perguntas sobre a ‘lava-jato’
a Raúl Zaffaroni, o maior penalista da América Latina, que criticou as delações
premiadas.
Sua casa, no bairro de Flores, setor de classe média,
tranquilo, a meia hora do centro de Buenos Aires, parece uma velha casona da
Toscana. Sua mesa de trabalho fica no meio de uma sala enorme.
Tem as dimensões
de uma biblioteca pública. Perto das estantes, pode-se ver belas peças de
artesanato latino-americanas, como um retábulo peruano de Ayacucho. Sobre essa
mesa, ao lado do computador, uma pilha de livros de Direito, muitos deles em
alemão, sobre a tipologia dos delitos políticos e econômicos, ou sobre o
nazismo. Raúl Zaffaroni completou 75 anos no passado dia 7 de janeiro. Ao
assumir como juiz da Corte Suprema da Argentina, em 2003, indicado pelo
presidente Néstor Kirchner, prometeu se aposentar quando alcançasse essa idade.
Honrou sua promessa. Mas Zaffaroni, um dos penalistas de maior prestígio no
mundo, não se distanciou do mundo. Viaja, escreve, dá palestras, recebe
doutorados honoris causa, estuda, dá aulas em universidades públicas da Grande
Buenos Aires. Também participa da discussão pública sobre os acontecimentos
argentinos e latino-americanos. Nesta entrevista para Carta Maior ele demonstra
seu vigor intacto, respondendo perguntas dos jornalistas e inquietudes
levantadas por importantes juristas do Brasil.
Carta Maior: Tarso Genro, ex-ministro da Justiça no governo
de Lula e ex-governador do Rio Grande do Sul, pergunta o que acontece com o
Estado de Direito quando a grande imprensa influi tanto no processo penal, como
vem sucedendo ultimamente.
Penso que a invenção da realidade por parte dos meios de
comunicação, especialmente os televisivos, está afetando a base do Estado de
Direito. E cria um perigo grave para a sua sobrevivência.
Carta Maior: Transmito a você uma pergunta do Professor da
UERJ, Juarez Estevam Xavier Tavares. Que medidas podem ser tomadas para
diminuir a irracionalidade do poder punitivo e evitar a destruição do Estado de
Direito?
A primeira medida tem que ser a proibição constitucional dos
monopólios ou oligopólios televisivos. Sem pluralidade midiática não podemos
ter democracia. O que os meios monopólios ou oligopólios estão fazendo na
América Latina é trágico. Nos países onde existem altos níveis de violência
letal, eles a naturalizam. Sua proposta se reduz a atentar contra as garantias
individuais. Nos países onde a letalidade é baixa, eles buscam exacerbá-la.
Clamam pela criação de um aparato punitivo altamente repressivo e,
definitivamente, também letal.
Carta Maior: É a vez do Professor da USP, Alysson Leandro
Mascaro. Os meios de comunicação de massa cada vez mais formam e moldam
perspectivas da compreensão do jurista. Em face disso, qual sua leitura sobre o
horizonte ideológico do jurista hoje? O mesmo do capital e dos grandes meios de
comunicação de massa? Qual sua percepção da ideologia como constituinte do
afazer do jurista na atualidade?
Não tenho a menor dúvida de que a Televisa, no México, ou a
Rede Globo, no Brasil, entre outros exemplos, são conglomerados, formam parte
indissociável do capital financeiro transnacional. Logo, também são parte desse
modelo de sociedade, que é uma sociedade com uns 30% de incluídos e 70% de
excluídos. Um modelo de sociedade excludente. Daí nasce uma necessidade, querem
moldar um jurista que se mantenha nessa lógica formal e não perceba que está
legitimando um processo de genocídio a conta-gotas. Temos esse tipo de
genocídio, em grande parte da América Latina, em circunstância em que o Estado
já não é mais o que mata, senão o que fomenta a violência letal entre esses 70%
que o modelo quer excluir. Não nos esqueçamos que dos 23 países que superam a
taxa anual de 20 homicídios a cada 100 mil habitantes 18 são da América Latina
e do Caribe, os outros cinco são africanos. Tampouco esqueçamos que também
somos campeões de coeficientes de Gini, ou seja, má distribuição da renda. Esse
é o modelo de sociedade que os meios massivos concentrados querem reafirmar. O
pior que pode acontecer na América Latina é continuar assimilando
assepticamente as teorias importadas como se não tivessem conteúdo político, e nos
perdermos nas doutrinas vinculadas a teorias presas a meros planteamentos
normativistas. Se, ideologicamente, a doutrina jurídica latino-americana não
evolui em direção ao realismo, lamentavelmente não fará nenhum favor nem ao
Estado de Direito nem às nossas democracias.
Carta Maior: Agora quem pergunta é o presidente do Movimento
do Ministério Público Democrático, Roberto Livianu. Qual a importância dos
acordos de leniência, para o controle da corrupção e qual a importância da
intervenção do Ministério Público, fiscalizando a celebração desses acordos?
Pessoalmente, acho que a delação premiada é perigosa em
qualquer caso. Especialmente em casos de corrupção. Hoje, na Alemanha, estão
tentando elaborar um novo conceito de crime político-econômico para os piores
casos de destruição econômica. Por exemplo, para as terríveis crises bancárias
que determinaram que os Estados Unidos tivessem que gastar 500 bilhões de
dólares e a Europa 460 bilhões de euros para salvar um sistema financeiro havia
provocado, grosseiramente, sua própria ruína, diante da indiferença dos órgãos
de controle bancário. Não acredito que, em casos assim, se possa aplicar, nem
minimamente, um acordo no estilo da delação premiada. O mais trágico nesses
casos é depender da boa vontade dos próprios delinquentes, que ofereçam suas
informações para se chegar às soluções. Há um livro muito interessante sobre o
tema, do professor Wolfgang Naucke, que se refere a algo que merece uma
reflexão: o título é O Conceito de Delito Político-econômico.
Quem pergunta agora é o Presidente da Associação Brasileira
dos Juízes pela Democracia, André Augusto Bezerra. Do ponto de vista da
estrutura interna do Judiciário, há alguma peculiaridade do sistema de justiça
argentino que o tornou mais sensível às violações aos Direitos Humanos da época
da ditadura do que o sistema de justiça brasileiro?
Não vejo uma diferença notória, em termos de estrutura
interna, de cada Judiciário. A política argentina para casos de direitos
humanos avançou por iniciativa dos poderes Executivo e Legislativo. Num
primeiro momento, ela chocou com algumas resistências dentro do Poder
Judiciário.
Depois dos juristas, a pergunta do jornalista. É possível
comparar a Operação Lava Jato, no Brasil atual, com a Operação Mãos Limpas, na
Itália dos Anos 90, quando os juízes começaram a descobrir os grandes subornos
nas obras públicas?
Não acho que a Mãos Limpas tenha a ver com a Lava Jato. A
Mãos Limpas não foi uma tentativa de golpe de Estado. Não nos esqueçamos que,
se analisamos todos os golpes de Estado militares que aconteceram na região,
eles se agarraram em duas bandeiras para se legitimar. Uma era a de
supostamente descontrolada criminalidade. Outra era a da corrupção.
Lamentavelmente, o que verificamos, no final de um século de tristes
experiências, é que os maiores casos de corrupção tiveram lugar sob amparo das
forças reacionárias. Ao dizer isso, não nego que em tal administração possa
haver personagens corruptos que devem ser punidos. Digo que em nenhum caso pode
ser um pretexto para que se legitime a desestabilização democrática. A magnificação
de casos individuais de corrupção através dos meios massivos de comunicação é
um velho recurso golpista, que conhecemos por tristes experiências. Em
definitivo, não é mais que o uso de formas estruturais de corrupção para
desarmar o potencial produtivo e as relações econômicas das nossas sociedades.
Carta Maior: No Brasil, o juiz federal Sérgio Moro,
responsável pela Operação Lava Jato, pretende alterar o Código Penal, para
colocar na prisão os réus condenados em 1ª Instância, independentemente dos
recursos para instâncias superiores, ou seja, é quase um tribunal de exceção.
Na América Latina, mais de 60% da população carcerária
chegou à prisão sem ser condenado em nenhuma instância. Ou seja, estão presos
só como medida cautelar, em forma de prisão preventiva. É uma realidade que já
é estrutural, se arrastra ao longo de anos e que implica numa inversão do
sistema penal. Primeiro alguém é detido, depois é condenado, a pena vem antes
da condenação.
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