quinta-feira, 28 de maio de 2015

Contraponto 16.847 - "Câmara avisa que têm patrão"

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28/05/2015

Câmara avisa que têm patrão


Com votação sobre financiamento de empresas privadas, deputados perderam oportunidade de emancipar-se diante do poder econômico que costuma alugar nosso sistema político

Vamos combinar que assistimos, ontem, a uma suprema ironia do momento político brasileiro.

Os líderes dos mesmos partidos que adoram subir a tribuna para elogiar o juiz Sérgio Moro e denunciar a corrupção na Petrobrás trabalharam sem descanso para preservar o sistema de aluguel dos poderes públicos que está na origem das irregularidades, desvios e abusos costumeiros do Estado brasileiro. Ignoraram uma campanha popular que recolheu 700 000 assinaturas no país inteiro para bater continência a quem assina seus cheques de campanha.

E agiram dessa forma sem pudor de fazer hora extra, pois foram obrigados a voltar atrás numa decisão de véspera.

Assim, vinte e quatro horas depois de se recusar a transformar o financiamento de empresas privadas em direito constitucional, a Câmara de Deputados mudou de ideia.

Por 330 votos a favor e 141 contrários — será preciso ainda passar por uma segunda votação — as contribuições privadas passam a fazer parte da Constituição. Não terão força de uma clausula pétrea, como a separação entre poderes, o voto direto e secreto, que não podem ser abolidos. Mas só poderão ser questionadas a partir de uma reforma constitucional.

Os 76 votos que mudaram de lado, de um dia para o outro, estabeleceram o domínio do capital privado sobre o Congresso num grau jurídico que nunca se viu.

A partir de ontem, assume-se que a política brasileira — pois a lei vale para campanhas para presidente, governador, prefeito — tem patrão. Não estou falando de Eduardo Cunha, por favor. Mas daquele personagem social-econômico, que paga para ser obedecido, colocando-se acima dos 200 milhões de eleitores, cidadãos daquele universo democrático onde 1 homem=1 voto.

Está garantido, agora, que temos eleitores de 1 homem=R$ 1 milhão de reais.

Caso a decisão de ontem venha a ser confirmada, o país terá perdido uma chance de tornar-se uma democracia comparável aos regimes mais avançados do mundo, aqueles onde a soberania popular é exercida como o poder fundamental da República. Foram estes países que puderam criar um estado de bem-estar social, onde os trabalhadores e a população pobre têm acesso a um sistema de benefícios capazes de garantir uma vida civilizada as grandes maiorias. E este caminho estava aberto pelo Supremo Tribunal Federal, onde uma maioria de 6 votos a 1 já havia rejeitado o financiamento de empresas privadas, a partir de uma constatação fundamental: pessoas vão as urnas e votam; seres inertes, as empresas não estão capacitadas para isso.

O debate de fundo envolve alterações importantes na vida da maioria dos brasileiros. O cientista político Adam Przeworski demonstrou que o estado de bem-estar funciona através de um pacto de parte a parte. Enquanto os trabalhadores se comprometem a respeitar o regime de propriedade privada os empresários aceitam fazer concessões às chamadas classes despossuídas e subalternas. Przeworski, um autor muito lido no curto período de sua existência em que o PSDB respeitava a palavra ” social-democracia “do batismo, definia este regime como capitalismo democrático.

As democracias com patrão existem, também. A maior delas fica nos Estados Unidos. Ali, nada se aprova que seja contra os grandes interesses privados. É por isso que nos EUA não se consegue criar um sistema de saúde pública equivalente ao que existe na Europa — embora os gastos sejam várias vezes mais altos do que no Velho Mundo. As empresas privadas de saúde não permitem.

Pela mesma razão, as boas universidades são fundações privadas, com mensalidades caríssimas — quem não pode pagar precisa ter um desempenho muito acima da média para conseguir bolsa.

Não é de espantar que o Congresso norte-americano seja capaz até de aprovar guerras para atender a seus financiadores de campanha que costumam ser apresentadas como iniciativas puramente patrióticas.

A força dos lobistas nas decisões políticas dos EUA é tamanha que as empresas privadas costumam ser responsáveis pela contratação e pagamento de funcionários de gabinetes parlamentares, que são emprestados a deputados e senadores — atuando, dentro do Poder Legislativo, como representantes diretos de seus empregadores privados. Imagine como saem os projetos de lei, as propostas, as sugestões. Como é o “debate”.

A força dos lobistas de armas explica porque o país não consegue controlar a venda de submetralhadoras automáticas pelo correio. Ela também ajuda a entender porque a Casa Branca e o Capitólio são os principais sustentáculos diplomáticos do Estado de Israel, postura de alinhamento automático que nem de longe favorece os interesses da maioria da população norte-americana, pelos riscos óbvios que representa para a paz.

Não há dúvida de que os parlamentares brasileiros, ontem, promoveram uma derrota de um esforço histórico para emancipar a política brasileira do interesse direto do empresariado.

Utilizando a gestão de Eduardo Cunha para levar uma política de revanche contra conquistas dos trabalhadores, o projeto de financiamento privado faz parte da mesma conjuntura do PL 4330, da terceirização, que implica em revogar a Consolidação das Leis dos Trabalho — embrião daquilo que se poderia chamar de nosso bem-estar social.

O que se assistiu, na verdade, foi a cena final de uma operação política de envergadura, que vinha sendo articulada há meses, para impedir um avanço que parecia assegurado no Supremo Tribunal Federal. Já no ano passado, depois de uma mobilização popular que recebeu centenas de milhares de assinaturas, formou-se uma maioria de seis votos no STF contra o financiamento de empresas privadas. Pelo placar, a decisão era caso resolvido e não poderia ser mudada, consumando uma vitória que, por boas e profundas razões, tinha um aspecto tão positivo que até podia ser vista como boa demais para ser verdade.

A votação só não avançava em função de Gilmar Mendes, que se manteve impassível, desde agosto do ano passado, inclusive diante dos apelos públicos para devolver seu voto — qualquer que fosse ele — para permitir ao plenário que seguisse nas deliberações e proclamasse a decisão.

Hoje pode-se entender a perfeita lógica daquele espetáculo. Ao travar o avanço de uma decisão cujo resultado lhe era desfavorável, Gilmar Mendes permitiu que Eduardo Cunha articulasse uma nova maioria na Câmara a partir da eleição de 2014. Com isso, ficou assegurado que o empresariado irá manter seu controle sobre a maioria do Legislativo brasileiro, numa vantagem como poucas vezes se viu em nossa história política.

A operação só não foi inteiramente bem sucedida porque, num acidente de percurso, um descuido de última hora, faltaram os votos na votação de anteontem. Na manhã de ontem, a partir de conversas fechadas, no gabinete de Eduardo Cunha, a maioria dos aliados de sempre se articulou novamente. O vice Michel Temer ajudou muito.

No início da tarde, não faltaram parlamentares bem comportados, com discurso na ponta da língua, para garantir o retorno à ordem.


Os mesmos parlamentares que se tornaram campeões de um moralismo barulhento e seletivo foram a tribuna para fingir que falavam de democracia, de respeito ao eleitor. Não faltou quem assumisse ares indignados para falar que não era possível elevar gastos públicos numa conjuntura como a atual — como se as contribuições, privadas entre aspas, de nossos empresarios não sejam sempre ressarcidas, com lucros redobrados e correção monetária.

Como bons empregados, ontem eles só queriam defender seus patrões, mostrar-se dignos de sua confiança tão bem representada. Desta vez, contudo, não foi possível fazer um bom teatro. Até pelos tropeços no enredo, tudo ficou muito evidente

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