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10/09/2013
Direitos sob ameaça
Paulo Moreia Leite
Aguarda-se para esta semana momentos decisivos na ação penal 470.
Os onze ministros irão julgar o pedido de embargos infringentes de 12
réus. Eles tiveram quatro votos a favor de sua inocência durante o
julgamento, o que lhes dá direito a pleitear que seu caso seja
reexaminado pelo tribunal, num outro julgamento, quando teriam direito,
inclusive, a um novo relator.
A noção de que os embargos
infringentes são um direito de réus hoje divide os ministros mas nem
sempre foi assim. Em 2007, o próprio Joaquim Barbosa, que hoje diz que
os embargos não tem amparo legal, afirmava o contrário.
Julgando um pedido de embargos num caso de assassinato, o atual
presidente do STF alegou que ele não poderia ser concedido porque os
requentes não haviam obtido pelo menos quatro votos dissidentes a seu
favor. Naquele momento, quando a ação penal 470 já era debatida no STF,
Joaquim não colocou a questão de mérito, de legalidade ou não dos
embargos. Seu argumento concentrou-se na falta de votos, deixando claro
que um réu com 4 votos a favor poderia utilizar este recurso. Não havia
dúvidas, porém quanto a legalidade dos embargos. Aplicando-se seu
raciocínio a ação penal 470, não poderia haver dúvida de que os embargos
caberiam a 12 dos 25 condenados. Isso deveria ser um ponto pacífico,
até porque não se tratava de uma opinião isolada.
No inicio do
julgamento, Celso de Mello fez uma colocação longa e fundamentada para
mostrar que os embargos infringentes eram um direito líquido e certo dos
acusados que tivessem pelo menos 4 votos.
Sua sugestão serviu para dissipar qualquer dúvida sobre o direito dos réus de contar com um segundo grau de jurisdição.
Foi uma colocação importante, pois se vivia uma situação muito peculiar do ponto de vista dos direitos dos réus.
Normalmente, apenas cidadãos com mandato representativo têm direito a
serem julgados diretamente em tribunais superiores. O cidadão comum deve
ser julgado numa instância inferior e, se for o caso, pode entrar com
recurso em instancias superiores.
Com o argumento de que não se
deveria dividir a ação penal, o STF negou o julgamento em primeira
instancia a 34 réus que não tinham direito ao chamado foro privilegiado,
medida tão discriminatória e injusta que não foi aplicada a outros
casos semelhantes, como o mensalão PSDB-MG.
Embora o julgamento
pelo Supremo pudesse ser considerado, até então, um privilégio e uma
promessa de tratamento facilitado, que havia beneficiado tantos
políticos no passado – o caso emblemático fora Fernando Collor -- a
situação concreta estava invertida. Era claro que se corria o risco de
suprimir direitos.
Para 90% dos réus, que não tinham mandato
eletivo, a decisão representava uma perda óbvia. Para facilitar o
trabalho da acusação, em nome da necessidade anunciada pelos meios de
comunicação de condenar e punir de forma exemplar, retirou-se desses
réus o direito a uma segunda instância. A reconstituição dos debates
daquela fase do julgamento é abundante em exemplos dessa argumentação.
O argumento de Celso de Mello teve, assim, esta utilidade. Naquele
debate preciso, era preciso dar uma resposta a um prejuízo sofrido por 9
em 10 dos réus do mensalão. Ele ajudou a desafazer suspeitas e temores.
Deu segurança e tranquilidade.
A pergunta que se faz, 13 meses
depois, é simples: na hora de se passar da teoria a prática os
infringentes irão sumir? Se havia discordância, por que o STF não abriu
um debate em torno da posição de Celso de Mello, na ocasião?
As dúvidas só foram surgir na última hora, quando, do ponto de vista dos réus, pode ser tarde demais.
Em posição pouco confortável num debate que terá imensa relevância na
avaliação final do julgamento, e que pode ter repercussão no plano
internacional, na quinta-feira da semana passada Joaquim achou
necessário mostrar que não estava só na controvérsia.
Disse que o
juiz Luiz Flavio Gomes também rejeitava os embargos infringentes.
Jurista com vôo próprio e conhecido por uma visão independente em vários
assuntos, com uma visão consolidada da importância dos direitos
individuais, sem que possa ser filiado a nenhuma das famílias políticas
em que se divide nossa magistratura, Flavio Gomes é uma voz importante
nessa discussão.
O detalhe: ao contrário do que disse Joaquim, Luiz
Flávio Gomes é a favor dos embargos infringentes e não tem dúvida de
que eles têm respaldo na jurisprudência brasileira e internacional. Mais
do que isso. Reconhecendo que há uma controvérsia a respeito, o jurista
acredita que este é mais um motivo para que os embargos sejam
concedidos aos réus. Com a autoridade de quem foi citado como fonte
confiável pelo presidente do Supremo, ele aplica, ao debate, um dos mais
conhecidos princípios do direito: em dúvida, pró réu. Reproduzo abaixo
trechos de um artigo em que o jurista explica o debate e seu verdadeiro
ponto de vista. Noto que o juiz sugere que confundiram a geografia de
sua argumentação. Ele considera que os infringentes valem para a
jurisprudência europeia mas não na América. Vamos ler:
"Na sessão de
hoje (5/9/13) o ministro Joaquim Barbosa rejeitou a possibilidade de
embargos infringentes, contra decisão do STF, em caso de competência
originária (casos julgados originariamente em razão do foro por
prerrogativa de função). Fomos honrados, Valério Mazzuoli e eu, com a
citação por ele da nossa doutrina a respeito do duplo grau de jurisdição
(aliás, trata-se de citação feita originalmente pelo min. Celso de
Mello, que foi reproduzida no voto do min. Joaquim Barbosa).
Duas
observações importantes: (a) eu, particularmente, apesar de todos os
argumentos contrários, discordo do min. Barbosa e entendo que os
embargos infringentes são cabíveis (a polêmica, no entanto, é grande);
(b) Valério Mazzuoli e eu afirmávamos na terceira edição do nosso livro
Comentários à CADH(RT) que o sistema europeu (europeu!) não admite o
duplo grau de jurisdição quando o caso é julgado pela máxima corte do
país. Vamos aos nossos argumentos e fundamentos:
(a) Por que entendo cabíveis os embargos infringentes?
De acordo com a minha opinião, não há dúvida que tais embargos
(infringentes) são cabíveis. Dois são os fundamentos (consoante meu
ponto de vista): (a) com os embargos infringentes cumpre-se o duplo grau
de jurisdição garantido tanto pela Convenção Americana dos Direitos
Humanos (art. 8º, 2, “h”) bem como pela jurisprudência da Corte
Interamericana (Caso Barreto Leiva); (b) existe séria controvérsia sobre
se tais embargos foram ou não revogados pela Lei 8.038/90. Sempre que
não exista consenso sobre a revogação ou não de um direito, cabe
interpretar o ordenamento jurídico de forma mais favorável ao réu, que
tem, nessa circunstância, direito ao melhor direito.
Haveria um
terceiro argumento para a admissão dos embargos infringentes? Sim. A
esses dois fundamentos cabe ainda agregar um terceiro: vedação de
retrocesso. Se de 1988 (data da Constituição) até 1990 (data da lei
8.038) existiu, sem questionamento, o recurso dos embargos infringentes
(art. 333 do RISTF), cabe concluir que a nova lei, ainda que fosse
explícita sobre essa revogação (o que não aconteceu), não poderia ter
valor, porque implicaria retrocesso nos direitos fundamentais do
condenado. De se observar que tais embargos, no caso de condenação
originária no STF, cumprem o papel do duplo grau de jurisdição,
assegurado pelo sistema interamericano de direitos humanos.
Pelos
três fundamentos expostos, minha opinião é no sentido de que o Min.
Joaquim Barbosa (que já rejeitou os embargos infringentes de Delúbio)
não está na companhia do melhor direito. O tema vai passar pelo
Plenário, provavelmente na próxima seção (de 12/9/13). A controvérsia
será imensa (ao que tudo indica)."
Há outra colocação
relevante. Considerado um mestre pelo ex-presidente do STF Ayres Britto,
que foi até São Paulo em busca de sua cultura jurídica, o professor
Celso Antonio Bandeira de Mello, um dos mais respeitados juristas do
país, publicou ontem um artigo sobre o mesmo tema. Vamos aprender alguma
coisa com ele:
“O Poder Judiciário, como toda e qualquer
realização humana, está sujeito às mesma falências e imperfeições a que o
ser humano está sujeito. Não é porque alguém é juiz, mesmo que da mais
alta corte do país, que escapa das insuficiências, defeitos, paixões ou
mesmo simples condicionantes capazes de virem a tisnar a atuação dos
homens em geral e, por conseguinte, a do próprio Judiciário,
interferindo com a isenção, equilíbrio e serenidade que deveriam
caracterizar tal Poder.
Este é um motivo, embora não o único, pela
qual o chamado duplo grau de jurisdição é importantíssimo para ao menos
tentar prevenir ou minimizar a realização de injustiças, de decisões
suscitadas por alguma destas indevidas causas prejudiciais ao
cumprimento do Direito. Por isto, todos os povos civilizados consagram a
obrigação de que os réus sejam submetidos a mais de uma instância de
julgamento, sendo excepcionalíssimos os casos em que há dispensa desta
exigência.
A Constituição brasileira não foge a este padrão. Assim,
justamente por ser incomum a transgressão deste valioso principio, é que
foi necessária a previsão constitucional do artigo 101, I, "b", para
que titulares de certos cargos fossem diretamente julgados pelo Supremo
Tribunal Federal, com o que ficaria suprimida pelo menos uma instância
de apreciação da matéria. Sem embargo, ao arrepio dele, no julgamento da
Ação Penal 470, vulgarmente conhecida, sob os auspícios da imprensa,
como mensalão, todos os réus, mesmo quando não se enquadravam na
hipótese deste dispositivo, foram privados desta garantia elementar.
Nenhuma justificativa prestante de Direito foi apresentada para fundar
tão esdrúxulo comportamento."
Você pode até achar que os
embargos infringentes são uma invencione de quem quer atrasar as
punições dos condenados. Pode falar que é tudo manobra protelatória,
chicana. Mas preste atenção no argumento fundamental de Celso Antonio
Bandeira de Mello:
Não é porque alguém é juiz, mesmo que da mais
alta corte do país, que escapa das insuficiências, defeitos, paixões ou
mesmo simples condicionantes capazes de virem a tisnar a atuação dos
homens em geral e, por conseguinte, a do próprio Judiciário,
interferindo com a isenção, equilíbrio e serenidade que deveriam
caracterizar tal Poder.
Pense no último argumento de Luiz Flávio
Gomes: mesmo que não houvesse fundamento para os embargos infringentes,
que se considerasse que eles são puro absurdo, eles teriam de ser
aplicados, na Ação Penal 470, porque já foram incorporados a nossa
jurisprudência. Suspendê-los agora, de uma hora para outra, implicaria
em “retrocesso nos direitos fundamentais do condenado.” Preste atenção
na palavra “retrocesso.” Era este o termo que se empregava quando, na
luta pela democratização do país, surgiam forças que operavam para
restaurar medidas típicas de uma ditadura. O jurista está dizendo, com a
elegância possível de quem se confronta com o presidente do STF que o
mencionou como fonte autorizada na discussão, que a negação dos embargos
infringentes seria uma medida autoritária e injusta.
Quem acompanha os debates sobre a fase atual do mensalão sabe muito bem qual a perspectiva destes dias.
São imensas as chances de que os embargos sejam rejeitados, apesar de tudo o que você leu nos parágrafos acima.
A Constituição mudou?
É isso que saberemos em breve.
Não tivemos uma Assembleia Constituinte para revogar direitos
consagrados pelos cidadãos e tão bem explicados por Celso Bandeira de
Mello e Luiz Flávio Gomes. Nem o Congresso aprovou qualquer emenda neste
sentido.
Mais do que nunca, o STF irá ingressar num debate político sobre os fundamentos do Direito.
A pergunta é: deve-se defender direitos e prerrogativas de cada réu, de
ser tratado como inocente até prova em contrário ou iremos atender o
clamor da mídia?
Sim, meus amigos. Depois do 7 de setembro, não dá
para dizer que as ruas “roncam” pela prisão imediata dos condenados da
ação penal 470. Isso é invenção de quem quer que os condenados sejam
presos de qualquer maneira. Acham bonito. Patriótico. Lindo.
No
fundo, estão matando saudade: há quanto tempo não se via comunista na
cadeia, devem comentar, em voz baixa, mesmo admitindo que não se fazem
mais comunistas como antigamente.
Os protestos de junho foram
imensos. Trouxeram questões e desafios para o mundo político e, com o
passar do tempo, todo mundo pode ver quem tenta dar respostas aquilo que
se disse nas ruas, e quem finge que não tem nada a ver com isso.
Quem ronca sobre o mensalão é a mídia.
Tenho certeza de que, convencidos da culpa dos réus, muitos brasileiros
esperam por sua prisão. Mas tenho certeza de que nenhum cidadão quer
que isso seja feito na base do atropelo, da suspensão de direitos, da
quebra de garantias.
Todos (ou quase todo) sabemos que, num regime
democrático, onde todos são iguais perante a lei, a falta de respeito
pelos direitos de um cidadão, qualquer que seja ele, representa uma
ameaça a todos cidadãos, a ruptura do “único elo inquebrável de união
entre homens civilizados,” como dizia George Clemenceau. Para quem não
se recorda, ele foi um dos principais articuladores da campanha pela
revisão da condenação do capitão Alfred Dreyfus, vítima de um processo
fabricado por militares franceses. Perseguindo um militar judeu, eles
queriam revogar direitos democráticos de toda população francesa no
final do século XIX.
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