15/12/2016
Dom Paulo Evaristo Arns, por Leonardo Boff
Perdi um mestre, um mecenas, um protetor e um amigo entranhável. Coisas importantes vão ser ditas e escritas sobre o Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns. Não direi nada. Apenas dou meu testemunho
Do Pragmatismso Político - 15/12/2016
Perdi um mestre, um mecenas, um protetor e um amigo entranhável. Coisas importantes vão ser ditas e escritas sobre o Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, falecido hoje, dia 14 de dezembro. Não direi nada. Apenas dou meu testemunho.
Conheci-o no final dos anos 50 do século passado em
Agudos-SP quando ainda era seminarista. Voltou de Paris com fama de ser
doutor pela Sorbone. No seminário com cerca de 300 estudantes
introduziu metodologias pedagógicas novas. Fez-nos conhecer a literature
grega e latina, línguas que dominava como dominamos o vernáculo.
Fez-nos ler as tragédias de Sófocles e de Eurípedes em grego. Sabíamos
tanto grego que até representamos a Antígona em grego. E todos
entendiam.
Depois vim a conhecê-lo em Petrópolis como
professor dos Padres da Igreja e da história cristã dos dois primeiros
séculos. Obrigava-nos a ler os clássicos em suas línguas originais, São
Jerônimo, seu preferido, em latim e São João Crisóstomo, em grego.
Quando o visitei há dois anos no convento de
religiosas na periferia de São Paulo o encontrei lendo sermões em grego
de São João Crisóstomo.
Foi nosso Mestre de estudantes durante todo o tempo
da teologia em Petrópolis de 1961-1965. Acompanhava com zelo cada uma
em suas buscas, com um olhar profundo que parecia ir ao fundo da alma.
Era alguém que sempre procurou a perfeição. Até entre nós estudantes
disputávamos para ver quem encontrava algum defeito em sua vida e
atividade.
Cantava maravilhosamente o canto gregoriano no
estilo de Solemnes, mais suave do que o duro de Beuron que predominava
até a chegada dele.
Durante quatro anos o acompanhei na pastoral da
periferia. Nas quintas-feiras à tarde, no sábado à tarde e no domingo
todo, acompanhei-o na capela do bairro Itamarati em Petrópolis. Visitava
casa por casa, especialmente as famílias portuguesas que cultivavam
flores e horticultura. Onde chegava logo fundava uma escola. Estimulava
os poetas e escritores locais.
Depois da missa das 10.00 os reunia na sacristia
para ouvir os poemas e os contos que haviam produzido durante a semana.
Estimulava intelectualmente a todos a lerem, escreverem e a narrarem
para os outros as histórias que liam.
Era um intelectual refinado, conhecedor profundo da
literatura francesa. Escreveu 49 livros. Instigava-nos a seguir o
exemplo de Paul Claudel que costumava cada dia escrever pelo menos uma
página. Eu segui seu conselho e hoje já passei dos cem livros.
O que sempre me impressionou nele foi seu amor e
seu afeto franciscano pelos pobres. Feito bispo auxiliar de São Paulo
ocupou-se logo com as periferias, fomentando as comunidades eclesiais de
base e empenhando pessoalmente Paulo Freire.
Como era tempo da ditadura, especialmente férrea em
São Paulo, logo assumiu a causa dos refugiados vindo do horror das
ditaduras da Argentina, do Uruguai e do Chile. Sua missão especial foi
visitar as prisões, ver as chagas das torturas, denunciá-las com coragem
e defender os direitos humanos violados barbaramente. Correu riscos de
vida com ameaças e atentados.
Mas como franciscano sempre mantinha a serenidade
como quem está na palma da mão de Deus e não nas garras dos policiais da
repressão.
Talvez seu feito maior foi O Projeto Brasil: Nunca Mais, desenvolvido por ele, pelo Rabino Henry Sobel e pelo Pastor presbiteriano Jaime Wright com toda uma equipe de pesquisadores.
Foram sistematizadas informações de mais de
1.000.000 de páginas contidas em 707 processos do Superior Tribunal
Militar. O livro publicado pela Editora Vozes “Brasil Nunca Mais” teve papel fundamental na identificação e denúncia dos torturadores do regime militar e acelerou a queda da ditadura.
Eu pessoalmente sou-lhe profundamente grato por me
ter acompanhado no processo doutrinário movido contra mim pelo ex-Santo
Ofício em 1982 em Roma sob a presidência do então cardeal Joseph Ratzinger.
No diálogo que se seguiu ao meu interrogatório, ele corajosamente deixou claro ao cardeal Ratzinger: “Esse
documento que o Sr. publicou há uma semana sobre a Teologia da
Libertação não corresponde aos fatos que nós bem conhecemos; essa
teologia é boa para os fiéis e para as comunidades; o Sr. assumiu a
versão dos inimigos desta teologia que são os militares
latino-americanos e os grupos conservadores do episcopado, insatisfeitos
com as mudanças na pastoral e nos modos de viver a fé que este tipo de
teologia implica”.
E continuou: “Cobro do Sr. um novo documento,
este positivo, que valide esta forma de fazer teologia a partir do
sofrimento dos pobres e em função de sua libertação”. E assim ocorreu, três anos após.
Tudo isso já passou. Fica a memória de um cardeal
que sempre esteve do lado dos pobres e que jamais deixou que o grito do
oprimido por seus direitos violados ficasse sem ser ouvido. Ele é uma
referência perene do bom pastor que dá sua vida pelos pequenos e
sofredores deste mundo.
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