17/12/2016
Meritocracia: o “sangue azul” da nobreza estatal
Do Tijolaço · 17/12/2016
Por Fernando Brito
Eu não posso falar da Corte de Luís XVI porque – como fez o Dr. Sérgio Moro quando se fez o paralelo com Savonarola – podem achar que estou pregando a guilhotina, quando defendo apenas a Queda da Bastilha. Mas, ao ler a matéria da Agência Pública sobre o Ministério Público do Estado de São Paulo – e é pouco mais ou menos o que se passa nos outros estados – concordei com o comentário deixado por outro leitor: isso deveria ser lido em todas as esquinas do país.
Ainda mais quando eles e seus assemelhados na Magistratura são capazes de ver em quem critica seu regime de privilégios e inconstitucionalidades meros subvertedores da Ordem de que são portadores, que apontam o dedo às suas vergonhas para proteger malversadores do dinheiro público, aos quais, na prática e sem os riscos de uma cela em Curitiba, se assemelham em consequências.
Ao texto, de uma clareza apavorante, dos repórteres Daniel Mello e Eliane Gonçalves , da Pública. E, se puder, siga o conselho do leitor, o mesmo que segui: espalhe em sua pequena esquina.
Direito ou privilégio?
.
Em setembro, o governo de São Paulo
encaminhou para a Assembleia Legislativa do Estado a proposta de
orçamento do Ministério Público (MP) para 2017. A previsão é destinar R$
2,3 bilhões para manter funcionando a estrutura criada para defender os
direitos dos cidadãos paulistas. Um orçamento três vezes maior do que o
previsto para a Secretaria de Cultura e o dobro do que será destinado
para pastas como Agricultura, Meio Ambiente ou Habitação. É com esse
dinheiro que o MP vai cobrir gastos com água, luz, telefone, salários – e
os polpudos benefícios destinados a procuradores e promotores.
A remuneração inicial de um promotor
público em São Paulo é de R$ 24.818,71. Na última etapa da carreira, o
procurador de justiça, o salário chega a R$ 30.471,11. São valores que
seguem o teto constitucional: promotores e procuradores paulistas
recebem, no máximo, 90,25% do salário de um ministro do Supremo Tribunal
Federal.
Mas os vencimentos não terminam por aí.
Somam-se benefícios como vale-alimentação, auxílio-moradia,
auxílio-livro, auxílio-funeral, pagamento de diárias, remunerações
retroativas, duas férias anuais. A Lei Orgânica do Ministério Público de
São Paulo, de 1993, prevê 16 auxílios extras que, apesar de serem
considerados legais, ajudam a ultrapassar, em muito, o teto
constitucional.
Na prática, dos 2015 membros do MPSP que receberam salário em outubro, 1243 receberam a partir de R$ 38,900, ou seja, 61,7% do total. É um valor acima
dos R$ 33.763 pagos aos ministros do STF, mais os extras. Se prosperar o
entendimento de que “teto é teto” e os “extras” não deveriam estar nem
na conta dos ministros do Supremo, a proporção de promotores e
procuradores que receberam acima do teto constitucional sobe para 79,8%.
Foram 1.608 promotores e procuradores que receberam mais do que o
salário teto de R$ 33.736.
A Comissão foi instalada, em novembro, no Congresso Nacional, para propor um fim aos “supersalários” de funcionários públicos.
A folha de pagamento do MPSP de outubro é
repleta de exemplos de “supersalários”. Naquele mês o promotor de
justiça de entrância final Milton Theodoro Filho, lotado na capital,
recebeu o maior valor da folha: R$ 129.469,78. Foram R$ 28.947,55 de
salário bruto (sem descontar a contribuição previdenciária e o imposto
de renda) e R$ 89.979,35 de indenizações (incluídos R$ 5.087,73
auxílio-moradia e vale-alimentação). Além disso, há mais R$ 9.179,62 de
valores retroativos da Parcela Autônoma de Equivalência (PAE), resultado
de uma decisão de 1992 do Supremo Tribunal Federal (STF) que equipara
os salários do Judiciário com os do Congresso Nacional.
No mesmo mês, o promotor Julio César
Palhares, que serve em Bauru, no interior paulista, recebeu R$
118.480,60. Desse montante, R$ 28.947,55 referem-se ao salário bruto, R$
82.281,19 a indenizações não discriminadas, à exceção de R$ 5.087,73 de
auxílio-moradia e vale-alimentação.
Orlando Bastos Filho, promotor em
Sorocaba, foi o terceiro membro com maiores vencimentos no mês,
recebendo R$ 107.025 brutos. Nesse valor estão incluídos R$ 64.901,22 de
indenizações não discriminadas e R$ 7.864,41 retroativos da PAE. Em
2015, Bastos Filho acirrou os ânimos dos vereadores do município ao
iniciar uma investigação sobre seus gastos com despesas de telefone,
carro oficial e itens de escritório.
O professor de ética e filosofia política
na Unicamp Roberto Romano estuda o poder Judiciário e defende o papel
do MP como instituição de garantia da democracia brasileira.
Mas
critica: “Eu acho que o Ministério Público, justamente porque é o
zelador da lei, o fiscal da aplicação da lei, deveria renunciar a esse
tipo de acréscimo ao seu salário, sobretudo porque não corresponde à
experiência de todos os demais funcionários do estado”.
As informações sobre os rendimentos dos
membros do MP estão disponíveis no Portal da Transparência. Veja abaixo a
lista dos 20 membros mais bem pagos do MP paulista em outubro:
Para Antônio Alberto Machado, promotor
aposentado, as altas remunerações do MP estão diretamente associadas a
práticas conservadoras: “As carreiras jurídicas, em geral, se tornaram
muito atrativas de algumas décadas para cá. Há 40 anos não era assim.
Isso fez com que os membros dessas carreiras tivessem um padrão
remuneratório equivalente ao que a gente chama de classe A. A leitura
que eu faço é que essas carreiras jurídicas estão ‘sitiadas’.
Foram
tomadas por essas classes média, média alta, classe alta que têm um
valor de mundo conservador e que estão julgando as classes de baixo”.
Promotores e procuradores têm a
prerrogativa de legislar sobre os próprios vencimentos. Alguns dos
valores e critérios para o pagamento de cada um desses extras são
definidos por resoluções e atos normativos que cabem ao procurador-geral
de justiça do estado. Foi um ato normativo de 2003 que definiu, por
exemplo, que o valor de uma diária corresponde a 1/30 do salário bruto
de um promotor em início de carreira. Em 2016, corresponde a R$ 827,30. O
valor extra é pago quando o promotor tem de substituir um colega de
trabalho.
Um ato normativo de 2014 definiu que
promotores e procuradores cedidos para outros órgãos continuam tendo
direito a receber o auxílio-moradia. Trata-se de um complemento à lei
orgânica que já garante que membros do MP que se afastem do cargo para
ocupar cargos eletivos, por exemplo, possam continuar recebendo os
vencimentos do órgão se abrirem mão do outro salário. É o que garante ao
deputado Fernando Capez continuar na folha de pagamento do MP. A troca
vale a pena. Enquanto um deputado estadual tem remuneração de R$
25.322,25, os vencimentos de Capez em outubro chegaram a R$ 40.497. Como
secretários do governo de São Paulo, os procuradores Mágino Barbosa e
Elias Rosa receberiam R$ 19.467,94. Porém, ao manterem os salários do
MP, eles receberam, em outubro, respectivamente R$ 56.911,63 e R$
47.685,94.
O maior benefício é o auxílio-moradia, no
valor de R$ 4.377 mensais. A ajuda financeira foi autorizada por meio
de liminar do ministro do STF Luiz Fux em setembro de 2014 e se estende a
membros da magistratura e dos ministérios públicos de todo o país. À
diferença do que ocorre com todos os outros funcionários públicos – até
mesmo dos congressistas –, o benefício se destina também para quem tem
residência própria e vive na mesma cidade em que atua. Ficam de fora
apenas aposentados e licenciados.
Segundo a folha de pagamento de outubro
de 2016, disponível no Portal da Transparência do MPSP, dos 2.084
promotores e procuradores públicos na ativa, pelo menos 1.593 recebem o
auxílio (76%). O custo anual para os cofres públicos é de
aproximadamente R$ 69,7 milhões. O valor daria para atender mais de 14
mil famílias com o programa Auxílio-Aluguel da prefeitura de São Paulo,
de R$ 400 mensais.
Mas a despesa não fica por aí. O
adicional foi tratado como retroativo pelo ministro Luiz Fux. Assim,
promotores e procuradores tiveram direito a receber os “atrasados” dos
cinco anos anteriores à liminar, ou seja, desde 2009. Para a maioria da
classe, isso significou uma bolada de mais de R$ 262 mil que vem sendo
paga em parcelas regulares desde então.
Outro auxílio que ajuda a compor o
orçamento anual dos promotores é o auxílio-livro. Uma ajuda extra de até
R$ 1.700 por ano, criada em 2010 com o objetivo de garantir a
atualização técnica dos promotores e procuradores.
Entre 2010 e 2013, o advogado Rodrigo
Xande Nunes trabalhou como oficial de Promotoria dentro do MP, cuja
tarefa era solicitar verbas indenizatórias para os promotores e
procuradores que assessora. “Bastava o promotor apresentar uma nota
fiscal de qualquer livraria com a descrição ‘livro’ para assegurar o
reembolso. Vi livros de doutrina jurídica que iam parar nas mãos de
sobrinhos do promotor que estavam cursando faculdade de direito, ou
romances virarem presentes de aniversário”, lembra.
Depois de ter deixado o cargo de oficial
de Promotoria, Rodrigo Xande seguiu carreira como advogado. É justamente
por estar do lado de fora que ele se dispõe a falar o que pensa sobre
os benefícios, que acredita afastarem a categoria da realidade dos
brasileiros: “É impossível garantir direitos para quem vive cercado de
tantos privilégios”, argumenta.
Uma das instituições mais aguerridas na
defesa de benefícios é a Associação Paulista do Ministério Público
(APMP). O escritório da associação ocupa o 11º andar da sede do MPSP e é
presidida pelo ex-candidato a procurador-geral Felipe Locke. Procurado
pela Pública, ele não concedeu entrevista para a reportagem.
O presidente da APMP tem, no entanto, se
posicionado publicamente sobre o tema. Segundo texto publicado na página
da associação em outubro, sobre a Proposta de Emenda à Constituição
(PEC) 62 que derruba a vinculação automática dos salários de agentes
públicos à remuneração dos ministros do Supremo, ele escreveu: “Sem
recursos nossas instituições não funcionam e sem Ministério Público e a
Magistratura, corrupto não vai para a cadeia. Esses projetos têm o mesmo
objetivo da PEC 37 [proposta derrubada pelo Congresso que propunha
limites ao poder de investigação de promotores e procuradores], acabar
com o poder de investigação, deixando os corruptos à solta”.
Ao mesmo tempo em que a APMP faz campanha
contra a PEC 62, também exerce pressão pela aprovação do Projeto de Lei
Complementar (PLC) 27, que eleva os salários dos ministros do Supremo
para R$ 39,2 mil em janeiro de 2017. Mas nestes tempos em que o governo
federal fala em limitar gastos públicos, a luta corporativa da APMP
ficou mais difícil.
Mais direitos
Agora, a nova demanda da classe é garantir ainda mais benefícios.
A Assembleia Legislativa de São Paulo
(Alesp) discute, em regime de urgência, o pagamento de planos de saúde
de caráter vitalício para os membros do MPSP. O Projeto de Lei
Complementar (PLC) 52/2015 foi apresentado pelo então procurador-geral
Márcio Elias Rosa e acolhido pelo então recém-eleito presidente da Alesp
e promotor afastado Fernando Capez. O PLC 52 já foi aprovado pelas
Comissões de Constituição e Justiça e de Finanças, Orçamento e
Planejamento e está pronto para ser votado pelo plenário desde dezembro
de 2015.
Promotores e procuradores querem também a
extensão do auxílio-moradia para seus colegas aposentados. Em outubro
de 2015, o Colégio de Aposentados da APMP reiterou o pedido que já vem
sendo feito desde 2013 à Procuradoria-Geral, apelando para o princípio
da simetria para justificar a ampliação da benesse.
Privilégio nos detalhes
Em novembro de 2015, o MPSP fechou um contrato para o fornecimento de copinhos de água mineral para a instituição. Ao custo de R$ 71.724, garantiu o fornecimento de 11.904 copinhos de 200 ml com água mineral por mês, durante um ano. Porém, o produto é usado para a hidratação apenas de parte dos servidores, os promotores e procuradores. A regra, em vigor desde 2011, ganhou forma em um comunicado interno da diretoria geral do órgão.
Restrições como essa raramente ganham redação oficial, mas são frequentes no cotidiano do MPSP. Passam pelos lanches – frutas, sucos e biscoitos, comprados com dinheiro público e que também são restritos aos promotores e procuradores –, pelas vagas nas garagens e pelo uso de elevadores.
As diferenciações são tão grandes que os “outros” funcionários costumam brincar que, se uma pessoa do século 19 pudesse viajar no tempo, o lugar que se sentiria mais à vontade seria o MPSP. “Eu já cheguei a falar para um procurador que a época da escravidão passou, que a ditadura também passou. Tem membro [do MPSP] que, se pudesse colocar o servidor no tronco e dar um surra, ele faria isso”, critica Jacira Costa Silva, oficial de promotoria desde 1989 e presidente do Sindicato dos Servidores do MPSP. A sindicalista enumera situações em que funcionários tiveram de lavar carros e até pagar contas pessoais dos promotores.
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