21/12/2016
Reflexões sobre o espetáculo da Lava Jato, por Fábio de Oliveira Ribeiro
Jornal GGN - qua, 21/12/2016 - 17:55
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por Fábio de Oliveira Ribeiro
No ano que finda o fenômeno cultural mais importante foi a Lava Jato. Usei a expressão fenômeno cultural porque a operação que submeteu a Justiça e o MP à lógica da atividade policial-política se desdobrou em três grandes vertentes.
De um lado o caso se desenrola no campo jurídico (onde deveria se submeter às regras de Direito), no outro ela se espalha pela sociedade como espetáculo político conduzido arbitrariamente pela imprensa, que não por acaso se beneficia de vazamentos ilegais e os utiliza seletivamente para ferir mortalmente o principal líder operário (negação do devido processo legal em benefício da utilização midiática do caso). A terceira vertente é eleitoral: tudo o que está sendo feito será reverberado durante a próxima eleição presidencial, seja ela em 2017 ou em 2018.
Como fenômeno jurídico o espetáculo conduzido por Deltan Dellagnol e Sérgio Moro produziram a destruição prática dos princípios constitucionais do Direito Penal. Ao se colocar fora do domínio das regras de Direito, o juiz da Lava Jato “...simplesmente deixou de lado a Lei...” como afirmou o Ministro Marco Aurélio do STF. Todavia, a conduta dele não foi objeto de sanção, pois o TRF-4 que considerou a operação que ele conduz “...constitui, sem dúvida, uma situação inédita, a merecer um tratamento excepcional.”
Na esfera midiática o poder processual do Juiz e do Promotor da Lava Jato é decuplicado. De simples técnicos obrigados a cumprir e fazer cumprir a Lei dentro de seus limites, eles foram transformados heróis da telenovela que vai ao ar todo dia nos principais telejornais. Quando começa o noticiário, o processo judicial da Lava Jato (que deve se desenrolar na Justiça de acordo com as regras claras definidas em Lei e com os princípios fundamentais prescritos na CF/88) desaparece e em seu lugar é encenado o processo midiático da Lava Jato em que os agentes definidos e tratados como heróis (juiz, promotor, delatores, delegados, etc...) e vilões (petistas, empresários que se recusam a delatar Lula, etc...) segundo um enredo que justifica os abusos cometidos pelo Estado em detrimento dos réus.
O massacre imposto à Lula através do fenômeno cultural Lava Jato cumpre não somente a finalidade de destruir um inimigo (o ex-presidente Lula). De fato, ele visa impedir a criminalização do amigo. Não por acaso, a Rede Globo raramente noticia o envolvimento do dono da TV Band na Operação Zelotes. Em contrapartida, o dono da TV Band não permite que os seus telejornais explorem o envolvimento do clã-Marinho no mesmo esquema bilionário de sonegação fiscal e evasão de divisas.
A cama de prego construída para Lula pelas redes de TV corresponde, portanto, ao confortável colchão de penas de ganso que um barão da mídia fornece ao outro. O judiciário sacramenta a distinção não incomodando aqueles que exigem mudanças na Lei para não serem obrigados a cumprir penas pelos crimes tributários e financeiros que cometeram e que são investigados na Operação Zelotes.
Enquanto o fenômeno cultural Lava Jato é utilizado para fazer o público acreditar na necessidade dos abusos ilegais cometidos por Dellagnol e Moro (porque os políticos supostamente querem mudar a Lei, como disse o TRF-4) a legalização dos crimes cometidos pelos barões da mídia é abafado para não discutido pelo respeitável público, convocado no horário nobre a aplaudir o massacre imposto a Lula pela imprensa, pelo MPF e por Sérgio Moro. Bresser Pereira disse recentemente que a luta de luta de classes retornou com força ao Brasil. Ele está rigorosamente certo.
O advogado é essencial à administração da Justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão (art. 133, da CF/88). A Lei garante ao advogado a inviolabilidade de seu escritório e correspondência escrita, telefônica, eletrônica, bem como o direito de se comunicar reservadamente com seus clientes (art. 7º, da Lei 8.906/1994). Estas regras, cuja obediência é indispensável à validade do processo judicial da Lava Jato também desaparecem quando entra em cena o processo midiático da Lava Jato. A imprensa não só aplaudiu os abusos cometidos contra os advogados de Lula como chegou a tratar injustamente um deles como suspeito de receber direita ou indiretamente da Petrobras para defender o ex-presidente.
De atores fundamentais no processo judicial, os advogados de Lula são transformados em coadjuvantes no processo midiático da Lava Jato. Eles não tem o mesmo espaço nos telejornais. Quando não são hostilizados, eles são ignorados e confinados a espaços alternativos.
A grande imprensa procura sempre os retratar como suspeitos de vilania ou como vilões semelhantes ao “chefe de quadrilha” que eles defendem. A criminalização de Lula e de seus advogados surte um efeito imediato.
O respeitável público não é convidado a exigir que Lula seja julgado na forma da Lei, tampouco é suficientemente sobre os abusos cometidos pelo MPF e por Sérgio Moro contra os advogados do ex-presidente. Todos os dias centenas de milhões de telespectadores são convidados a aplaudir a execução prévia e preventiva de Lula encenada nas redes de TV. De fato, os barões da mídia só se sentem compelidos a defender o princípio constitucional da presunção de inocência quando eles mesmos são envolvidos em escândalos financeiros, como aquele investigado na Operação Zelotes.
Parte da estratégia de defesa de Lula tem sido tentar restaurar a legalidade do processo judicial da Lava Jato interferindo no processo midiático da operação. Neste campo eles travam uma luta absolutamente desigual. Além de não serem proprietários dos meios de produção do espetáculo eles não detém a competência profissional específica indispensável à exploração dos mesmos.
A desigualdade de meios no processo midiático se duplica e reproduz no processo judicial, pois os promotores e juízes se sentem à vontade para violar a Lei quando sua conduta inadequada não pode sofrer sanção sem despertar reação pública. A Lava Jato, portanto, se apresenta no campo midiático como o gigante Golias diante do qual um heróico Davi (a defesa de Lula) usa a funda para lançar seus modestos contra-ataques.
“O caso Lula”, Editorial Ástrea, coordenado por Cristiano Zanin Martins, Valeska Teixeira Zanin Martins e Rafael Valin é sem dúvida um destes contra-ataques. O livro foi escrito por juristas, mas seu público alvo é ampliado. Os textos são compreensíveis, sofisticados demais em alguns pontos. A única desvantagem da obra é o preço, inacessível para a maioria da população. Uma edição popular e de bolso deveria ser produzida e distribuída a preços populares.
Comprei um exemplar de “O caso Lula” e já li quase todos os textos. Os que não li procurei folhear, me detendo aqui e ali antes de escrever este comentário. Em geral os autores que colaboraram na produção do livro parecem acreditar no restabelecimento da normalidade judiciária. Todos, sem exceção, advogam o reencontro do processo judicial da Lava Jato com os princípios constitucionais do Direito Penal. Os efeitos deletérios do processo midiático da Lava Jato são criticados. Mas o fenômeno cultural de 2016 que abrange não somente a Lava Jato (super explorada) como também a Zelotes (operação esquecida pela mídia para que os barões da mídia consigam impor suas demandas legislativas) não foi objeto de reflexão.
A dinâmica do processo midiático da Lava Jato já solapou totalmente o processo judicial da operação.
Tanto isto é verdade que Dellagnol e Moro transitam do Fórum para os estúdios de TV com uma rapidez e tranquilidade invejável. Apesar das críticas, a encenação do PowerPoint contra Lula foi perfeita e surtiu o efeito desejado. A imprensa explorou o episódio à exaustão. E apesar das críticas que o espetáculo recebeu dos juristas (inclusive no livro “O caso Lula”), não me parece que o respeitável público tenha perdido interesse no processo midiático da Lava Jato ou deixado de apoiar o massacre imposto diariamente a Lula.
E já que estamos falando do fenômeno cultural de 2016, outra questão merece ser discutida. A quem beneficiará a dispersão da atenção do público neste momento de crise econômica, de desemprego, de incerteza política e de pessimismo dos investidores e empresários: aos defensores de Lula ou aos arquitetos do do processo midiático da Lava Jato?
Há várias décadas Guy Debord afirmou que:
“O espetáculo é o herdeiro de toda a fraqueza do projeto filosófico ocidental, que foi um modo de compreender a atividade dominado pelas categorias do ver; da mesma forma, ele se baseia na incessante exibição da racionalidade técnica específica que decorreu deste pensamento. Ele não realiza a filosofia, filosofiza a realidade. A vida concreta de todos se degradou em universo especulativo.” (A sociedade do espetáculo, Guy Debord, editora Contraponto, Rio de Janeiro, 2008, p. 19)
O conflito entre o processo judicial da Lava Jato e o processo midiático da operação é evidente, com predominância cultural do último. Os jornalistas obrigaram a defesa de Lula a reagir no campo midiático enquanto as prerrogativas profissionais dos advogados dele vão sendo trituradas no Fórum. A força do Direito foi substituída pelo direito da Força. Como tem ao seu lado a mídia (por razões obviamente ligadas aos interesses mesquinhos a serem defendidos contra a Operação Zelotes) Deltan Dellagnol e Sérgio Moro esquecem e/ou desprezam deliberadamente os princípios constitucionais do Direito Penal no processo judicial e filosofizam a realidade para transformar em justiça o poder derivado da propriedade dos meios de produção do espetáculo.
E assim vinte e cinco séculos de evolução da Filosofia do Direito foram reduzidos a nada. Hoje no Brasil o único princípio jurídico em vigor é aquele enunciado por Trasímaco. Dizia o adversário de Sócrates:
“A justiça é o interesse do mais forte”
Como o mais forte na sociedade do espetáculo é aquele que detém os meios de produzir fenômenos culturais, segue-se que o processo midiático tem realmente condições de solapar totalmente o processo judicial. A Lava Jato, apesar das críticas lançadas pelos juristas no livro “O caso Lula” não terá um final feliz para Lula. Não creio mesmo que ela possa ter um fim. De fato ela é apenas o começo de um novo regime político, partidário, policial e judiciário.
No centro do regime militar estavam os generais. No centro da nova ditadura estão as câmeras de TV. E aqueles que menos se apresentam ou são criticados diante delas (os donos das redes de TV) são os únicos cidadãos na República do Espetáculo que eles fundaram destruindo a República brasileira. É óbvio que em algum momento futuro Deltan Dellagnol e Sérgio Moro serão descartados porque deixaram de ser úteis.
Todavia, muitos outros irão querer trilhar os caminhos que eles abriram. Afinal, se há uma coisa que nunca tem fim é o desejo de fama rápida, fácil e aparentemente segura.
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