24/08/2016
O projeto vira-lata desabilita o país para os Isaquias
A ninguenzada preta, parda, favelada, periférica não cabe no olimpo dos mercados que o golpe quer impor ao Brasil. Daí a contrariedade com o êxito da Rio-2016.
Carta Maior - 23/08/2016
Por trás do viralatismo há método – e há teoria.
Se vingar seu projeto de país, o Brasil acaba enquanto possibilidade de um futuro ordenado pela democracia social.
A meta é fazer do país um frango desossado da sadia no cepo dos mercados.
E é esse o motor de um empenho que assumiu singular intensidade nos dias que correm.
A engrenagem envolve uma lista robusta de alvos a desabilitar.
Desde
sediar uma Olimpíada a explorar o pré-sal, dispor de universidade
pública e serviço digno de saúde ou resgatar a industrialização -- são
variados os temas e princípios a compor o sacramento de uma
impossibilidade que se pretende tornar inviolável.
O
Brasil não sabe, não pode e, sobretudo, não deve mais afrontar os
fundamentos de uma inabilitação essencial para o ajuste de virulência
inédita, que deve ocorrer após o impeachment -- sibila-se nas
entrelinhas e fora delas também.
Dissolver
qualquer coágulo de nação como se dissolve os grumos do trigo na
batedeira de bolo é a bússola de um golpe que não dispõe de estratégia
alguma de desenvolvimento porque é justamente isso que se almeja
eliminar.
Basta
colar a inabilitação nacional aos mercados globais, esses que
estrebucham sob o peso de uma desordem neoliberal irreversível.
As
hélices cortantes serão acionadas na velocidade máxima, assim que o
Senado dê a derradeira cutelada no pescoço altivo da presidenta
assertiva escolhida por 54,5 milhões de brasileiros, tão teimosos
quanto em rechaçar há quatro eleições o projeto que agora quer se impor
com um golpe.
A
advertência e as revogações encerram uma rígida contabilidade
argentária: 70% a 80% do povaréu não cabe dentro da nação e precisa se
convencer disso.
É
incontida a contrariedade com a heresia levada às últimas consequências
a partir da aposta feita há sete anos pelo então presidente Lula, de
sediar os 31º Jogos Olímpicos na cidade do Rio de Janeiro.
A
bizarra sucessão de dezesseis dias durante os quais emergiu uma nação
normal em seus acertos e falhas, mas predominantemente hospitaleira,
aguerrida, criativa, admirada e capaz, abriu uma dissonância intolerável
à narrativa de país capacho, cuja única opção consistiria em dobrar a
espinha para sempre.
Garrafais
e adversativas do dispositivo midiático conservador tentavam consertar o
estrago nesta segunda-feira, mitigando o que deu certo para resgatar o
bordão do fracasso:
Para ficar nas manchetes de quatros exemplares do canil, no day after do evento (22/08):
‘Prazo,
falta de foco e de base tiram o Brasil dos 10 mais’(Valor); ‘Brasil
celebra sucesso dos jogos, mas não bate meta’ (Folha); ‘Brasil faz
melhor campanha, mas não atinge meta’ (Estadão); ‘Mesmo com recorde de
medalhas, meta do país não foi cumprida’ (O Globo).
Não foi, não será, nunca deveria ter sido tentado.
O
colunista da Folha que encarna um almanaque de faits divers, reclama
nesta 3ª feira que os dezessete dias de jogos olímpicos custaram ao
Tesouro R$ 17 bilhões -- R$ 1 bi ao dia, proclama. Depois de exibir a
argúcia aritmética admite que metade disso foi em obras do metrô, que
vieram para ficar.
O
artificioso empenho no desapreço pode ser medido pela atitude oposta de
um concorrente estrangeiro na felicitação aos seus atletas.
O
jornal El País, um dos mais importantes do mundo, longe de ser de
esquerda, saúda na delegação espanhola o feito épico capaz de sacudir o
brio de um país necrosado pelo austericidio que se quer ministrar aqui:
‘España cierra los Juegos de Río con 17 medallas --7 de oro, 4 de plata
y 6 de bronces.
Los siete títulos olímpicos coronan a una generación que no se conforma con ser segunda y se sobrepone a la crisis economica’
Los siete títulos olímpicos coronan a una generación que no se conforma con ser segunda y se sobrepone a la crisis economica’
Um
detalhe ilustrativo: a campanha espanhola foi idêntica à do Brasil em
ouros, (7 ) e ficou ligeiramente abaixo no computo total de medalhas
(17, contra 19 dos brasileiros).
Com uma vantagem singular para o épico local.
O desempenho dos atletas anfitriões foi liderado predominantemente pela ‘ninguenzada’ de Darcy Ribeiro.
Sim,
a ninguenzada preta, cafuza, parda, favelada, sertaneja, composta de
pedreiros pobres, filhos de faxineiras, moleques da periferia, vidas que
já nascem remando contra a corrente, dando murro em ponta de faca,
chutando pedra, rebatendo o azar até um belo dia engancharem o país no
olimpo do esporte mundial.
Cruel
é a palavra para uma elite que sonega esse orgulho às crianças de uma
nação carentes de heróis que as livrem do traficante da comunidade.
Senhores
senadores desta República que sucedeu ao regime escravocrata mais
longevo da face da terra: essa é a natureza do golpe em curso.
Inabilitar
o Brasil para a igualdade é o imperativo categórico de quem se propõe a
regenerar o tecido econômico e político à imagem e semelhança dos
interesses que secularmente barraram a ninguenzada no pódio da
cidadania
Hoje,
a maratona que verdadeiramente importa é fornecer aos mercados um
substrato de país livre, leve e desimpedido de líderes, projetos,
políticas, direitos, regulações e gastanças.
Daí
por que a conquista do ouro na modalidade em que o fracasso tido como
certo trombou com o imprevisto brilho da organização deve ser esquecido.
‘Organização
olímpica vence desorganização brasileira’, restringe a Folha sem dar
chance a qualquer vínculo entre a nação e o evento irrealizável que deu
certo.
Para
que não haja recidiva, o diário sangra a teimosia no subtítulo de
misericórdia: ‘O melhor da Olimpíada deveria começar agora, mas não
virá’ (Folha, 22/08/2016).
‘Não virá’.
O
azedume reiterado em dezesseis dias de cobertura, segundo a ombudsman,
gerou protestos até dos assinantes que escolheram o produto dos Frias
como a sua janela para ver o país.
Fosse
mesmo para vituperar algo, seria preciso admitir que a tradição
olímpica foi rompida justamente na vexatória descortesia do golpe
apoiado pelo jornal, durante a cerimônia de transmissão simbólica da
tocha ao Japão, sede dos jogos em 2020.
Shinzo
Abe, o premiê japonês, viajou 18,5 mil quilômetros num túnel de
animação compactado em vídeo – para irromper no Maracanã, em meio à
chuva que desabava na festa de encerramento, domingo.
Estava ali para erguer a ponte do espírito olímpico com seu homólogo brasileiro, como manda a tradição secular.
Só que não.
Ciente
das vaias estocadas no Maracanã o golpista ficou em Brasília, para onde
Abe se recusou a ir, demarcando a recusa no meio do gramado chuvoso,
privado do respeito e da hospitalidade do anfitrião que encarna o
espírito olímpico.
Nenhum
jornal considerou esse fato mais grave do que o enfatizado fracasso de
‘não se atingir o objetivo olímpico’ – embora o 13º lugar destoe muito
menos do almejado 10º posto do que deixar na mão um chefe de Estado em
visita oficial.
Desculpe o transtorno, premiê Shinzo Abe, estamos em fase de demolição.
Cai uma pátria em fraldas, para a instalação de um olimpo de capitais livres de encargos sociais.
Breve, aqui.
Senhores
senadores, olhem o rosto desses medalhistas antes de baixar o cutelo no
pescoço da Presidenta impedida de recepcionar o premiê Abe no Maracanã.
O do canoeiro Isaquias, talhado a machado, por exemplo.
Carrega-se
ali um pedaço da história do Brasil -- essa que agora está em vossas
mãos porque se estivesse de fato nas dele o barco não se renderia à
correnteza regressiva.
Olhem o povo em nome do qual usurpadores querem estreitar mais uma vez o acesso às margens seguras da sociedade.
Fixem por um minuto os olhos em Isaquias.
O
canoeiro medalhista traz na pele o saque ancestral a povos desse
rincão reduzidos a legiões sem terra-sem floresta – sem teto-sem
trabalho-sem direito.
Esse
rosto guarda o horror das aldeias em chamas, da senzala claustrofóbica,
da criança maltrapilha pasma pelo açoite a retalhar o lombo do pai
feito toucinho cru.
Traz o rosto de Isaquias a noite insone do quilombo.
A
meia liberdade sem acesso à terra está ali, assim como o estoque de
gente banida pela lógica de batustões, essa que agora os senhores estão
prestes a consagrar mais uma vez como ‘sacrifício necessário’.
A prioridade do jornalismo passa ao largo da fuga ancestral dos isaquias na contracorrente dos séculos até o pódio da Rio-2016.
Ao pauta é provar que o ocorrido é anômalo, descabido, irrepetível, temerário -- inviável.
Varrer
a recidiva de autoconfiança e autoestima que possam inspirar esses
dezesseis dias em que ‘a organização olímpica venceu a desorganização
brasileira’ é imperativo para coibir paralelos com a vida real.
A mão pesada denuncia a inexatidão daquilo que se quer traduzir como ‘a ruína da corrupção lulopetista’.
O rosto de Isaquias nos diz que o que está em jogo trata de coisa mais abrangente e conhecida
Trata de uma encruzilhada clássica na história das nações – o que não inocenta os erros dos seus protagonistas.
Mas o que a caracteriza, sobretudo, é a crispação de conflitos permanentes em luta de classes aberta e sangrenta.
A
tempestade engata uma transição de ciclo de desenvolvimento à deriva
internacional que se estende desde 2008, com o esgotamento da ordem
neoliberal.
Os noticiosos a reduziram a uma desfrutável faxina da direita no quintal da esquerda.
A meia verdade brandida à exaustão pelo meio-juiz dissipa o principal no secundário.
Por
exemplo, a intensificação da disputa pela riqueza corrente; a
exacerbação dos conflitos pela destinação dos fundos públicos; o braço
de ferro pela repartição dos sacrifícios da travessia; o confronto pelo
acesso ao estoque da riqueza capaz de mitigar a transição; o escrutínio
das políticas e arcabouços institucionais – entre os quais a desdenhada
reforma política-- que pavimentarão o passo seguinte da história.
No centro de tudo late a tese da inabilitação do Brasil para comandar democraticamente o seu desenvolvimento.
Construir
uma nação é um ato de ruptura política que a usurpação golpista quer
terceirizar ao mercado, escorraçando a urna e suas escolhas do centro
das decisões.
Delimitar
um território, fincar estacas, declarar e exercer soberania não é coisa
que se faça impunemente em tempo algum e em qualquer latitude.
Sobretudo
quando se trata, como é o caso, da sorte de um povo e do destino do
desenvolvimento em um dos maiores territórios do globo, dotado das
maiores reservas de água, minérios, petróleo, terras férteis, potencial
hidrelétrico e solar; ademais de florestas e biodiversidade, tudo isso
arrematado por um gigantesco mercado de isaquias.
O
que significa ser tudo isso em uma mudança de época em que a
civilização terá que se apoiar em recursos escassos que o Brasil dispõe
em abundância?
Significa
o desafio de combinar articulação internacional com soberania
intransigente e justamente por isso enfrentar uma colisão sem trégua com
a lógica dos capitais sem lei.
São
essas correntezas violentas que movem as raízes estruturais da conjura
na qual a mídia se aliou à escória e ao dinheiro para derrubar uma
Presidenta honesta, acusada de pedaladas fiscais.
Quem
melhor encarna o elo entre a superfície e as profundezas desse ardil é
o chefe oculto das operações , o tucano Fernando Henrique Cardoso
O
ideólogo age movido por uma antiga certeza: não há espaço para um povo
de isaquias comandar o seu destino no capitalismo do nosso tempo.
Menos ainda –diz -- para o ‘voluntarismo lulopetista’ construir uma democracia social tardia no coração da América Latina.
Isaquias, negro e cafuzo, recolha seu remo voluntarioso, a rota de um timoneiro mais alto se alevanta.
Os
acontecimentos recentes resgataram -- no entender do viralatismo -- a
pertinência da análise do sociólogo de 1967, ‘Dependência e
desenvolvimento na América Latina’, sobre a inviabilidade de um modelo
de desenvolvimento soberano na região.
Pobres isaquias de todo o Brasil, adernem ou rendam-se.
A dependência é estrutural, avisa FH desde 1967 .
A dependência é bela, adicionaria o presidente tucano à classe média nos anos 90.
A dependência é inexorável, diz agora o ideólogo do golpe institucional contra Dilma e o PT.
FH partiu de um diagnóstico correto, ao apontar o equívoco de uma parte da esquerda brasileira em 1964, que via na burguesia nacional um aliado dos trabalhadores na luta pelo desenvolvimento.
Mas extraiu daí conclusões equivocadas no extremo oposto.
O
tucano enxergou na complementariedade entre o capital local e o
estrangeiro o reinado definitivo das elites: o desenvolvimento associado
e dependente, no qual o consumo da classe média forneceria o
amortecedor político ao sistema --e o fluxo de capitais externos
lubrificaria o conjunto em um equilíbrio dinâmico.
Não importa que o pião precisasse girar cada vez mais depressa para não desabar –desde que girasse, tudo bem.
Faltou abordar o essencial, porém.
Os conflitos inerentes à associação entre o capital local e o internacional e o seu custo em libras de carne humana.
Com quantos isaquias jogados ao mar se faz essa canoa?
A
ausência do olhar dialético magnificaria aquilo que FHC criticara na
esquerda dos anos 60: a troca do materialismo histórico por um wishful
thinking.
No
seu caso, um autoengano de cosmopolita provinciano, traduzido
macroeconomicamente em uma ‘âncora cambial’ que se revelou desastrosa
quando o pião parou de girar, os capitais inverteram o curso e a maré
baixa revelou uma nação de industrialização destruída, reservas cambiais
à míngua, refém do capital especulativo e de seu capitão do mato: as
cartas de arrocho do FMI.
Enquanto
durou, a aparente consagração da teoria deu estofo ao projeto político
do sociólogo, que a personificou na Presidência como se não houvesse
amanhã.
Sobretudo na sôfrega dilapidação do patrimônio nacional.
O
surgimento do PT e a vitória desconcertante do líder operário em 2002 e
2006 – que fez a sucessora em 2010, reeleita em 2014 -- introduziria um
ruído insuportável no escopo desse conformismo estratégico.
Para
revalidar a teoria e os interesses aos quais ela consagra uma
dominância perpétua era necessário desqualificar a heresia de forma
exemplar.
Eis
a essência da vendeta que hoje dá base teórica ao viralatismo e
ressuscita como farsa a tragédia dos anos 90, adicionalmente
comprometida pela inexistência das condições externas momentaneamente
favoráveis então.
Para isso dar certo é necessário derreter e refundir o país como um corredor de vento dos capitais globalizados.
A
aposta extremada explica a contrariedade com qualquer deslize que
sugira a existência de vida fora da renúncia absoluta ao comando do
desenvolvimento.
Derrota-la,
por sua vez, requer um grau de ousadia maior do que tem sido a
disposição de libertar a democracia da passividade a que foi submetida
pelo modelo político das últimas décadas.
É uma corrida contra o tempo.
O
golpe espera cortar a cabeça de Dilma, e aleijar o seu entorno, antes
que as contradições disseminem uma resistência para a qual não se
preparou.
Assim como não contava com o sucesso improvável das Olimpíadas.
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