27/08/2016
Dilma precisa voltar, por Paulo Moreira Leite
Do Brasil 247
Por Paulo Moreira Leite
Reunidos a partir das 9 horas da manhã
de hoje, os 81 senadores da República têm diante de si uma decisão
crucial para o destino dos 200 milhões de brasileiras e brasileiros.
Podem abrir caminho para uma catástrofe
histórica, tão ruinosa que pode inviabilizar por décadas a construção do
país como nação soberana e menos desigual, capaz de oferecer
oportunidades aos fracos e excluídos de cinco séculos. Ou podem dar
inicio a uma correção de rumo, retomando um processo histórico que,
mesmo envolvendo inúmeros problemas e limites, erros e omissões, deve
ser reconhecido como o ponto de partida para um necessário esforço na
construção de um país a altura das necessidades da maioria dos
brasileiros. A própria população se encarregou de mostrar isso com
clareza absoluta nas últimas quatro eleições presidenciais, quando se
colocou sempre do mesmo lado, em apoio a um mesmo projeto que é, acima
de tudo, uma crítica profunda aos governos voltados para um país dos
ricos, dos bem nascidos e sua magra clientela social.
A eventual permanência de Michel Temer
na presidência implica na consolidação de um governo incapaz de trazer
esperanças para as famílias dos brasileiros. Mesmo com auxílio
permanente dos principais meios de comunicação o presidente interino foi
incapaz de oferecer a população aquele mínimo de ilusões -- em geral
passageiras -- que fazem parte da lua de mel com a população,
oportunidade única que sempre foi um direito dos governantes recém
chegados ao cargo. Temer é um presidente novo e impopular demais para
quem acaba de assumir. Sempre que perguntada, a população deixa claro
que quer vê-lo fora do governo na primeira oportunidade.
Essa fraqueza política estrutural
explica movimentos mais recentes dos aliados de abril-maio, que apontam
para um golpe dentro do golpe, que poderia evitar a permanência de Temer
no Planalto até 2018, como determina o calendário da eleição que Dilma
venceu em 2014. Detalhe: o calendário envolve prazos decisivos nos
próximos três meses.
A Constituição determina que, caso a
presidência da República fique vaga até 31 de dezembro de 2016, o
Congresso deve convocar eleição para o novo governo no prazo de 90 dias,
permitindo que o povo dê a última palavra numa questão essencial para
sua existência como o poder soberano de Estado. Se a vacância ocorrer
depois do reveillon deste ano, caberá ao Congresso, sim, este mesmo, a
casa de Eduardo Cunha, de tantos órfãos das urnas de 2014, 2010, 2006 e
até 2002, apontar o novo presidente. Este é um novo elemento de
instabilidade para Michel Temer. Tudo será feito para que seja protegido
e preservado por 90 dias. Mas, como as marcas de iogurte, gelatinas e
tantas mercadorias disponíveis nos supermercados, seu governo é um
produto com prazo de validade.
Em pouco mais de três meses no posto,
Temer & equipe demonstraram uma voracidade política incompatível
com a própria interinidade. Destinada a prestar contas aos
patrocinadores das manobras espúrias que permitiram trair a presidente
eleita e assumir ao poder, a ilegitimidade do governo foi estampada na
testa, denunciada por uma população que se recusa a esquecer a verdade
democrática básica dos períodos que correm, ensinada de baixo para cima,
na primeira grande derrota dos articuladores de abril-maio:
"impeachment sem crime de responsabilidade é golpe."
Cavalgando de modo oportunista a justiça
do espetáculo da Lava Jato, instrumento essencial para a paralisia e
afastamento do governo anterior, os novos governantes tentam salvar a
pele num pacto de sobrevivência -- inviável sem a entrega de pelos menos
alguns gladiadores com outra origem, capazes de dar alguma
credibilidade ao circo.
Em pouco mais de 90 dias Temer foi capaz
de produzir uma herança que ameaça o melhor de nossas conquistas --
ainda limitadas, nunca é demais reconhecer. Amplamente rejeitado em dois
plebiscitos organizados nos últimos 60 anos, o parlamentarismo está de
volta, de contrabando, às costas do eleitor, que encara o Congresso
como endereço do inferno, do pronto para garantir palácios eternos aos
amigos e estrelas do golpe, possíveis campeões apenas de voto indireto.
Foi o que escancarou, sem o menor pudor, o ministro Gilberto Kassab,
amigo de todas as horas de José Serra.
No plano econômico, assistimos ao
desmanche de um esforço de crescimento voltado ao mercado interno. Em
seu lugar, ensaia-se uma tentativa de recuperação de um projeto que, num
momento de rara franqueza, um dos mais influentes arquitetos da visão
tucana de mundo, o economista André Lara Rezende, foi capaz de anunciar
sem maiores rodeios: promover a integração subordinada do Brasil aos
interesses dos grandes patrões do capitalismo global.
Esta orientação explica o apoio a ALCA
nos anos de Fernando Henrique Cardoso e, nos primeiros ensaios de
governo Temer, a tentativa de entregar a principal joia da família, a
Petrobras e a riqueza do pré-Sal. Está na origem da sabotagem ao
Mercosul, destinada a abrir os mercados internos da América do Sul para
as grandes empresas norte-americanas e seus associados, inviabilizando
qualquer tentativa de desenvolvimento autônomo, como os países centrais
de hoje puderam atravessar, no momento devido.
Também explica a lei de
gastos de Henrique Meirelles, que pretende instituir pelo prazo de 20
anos uma ditadura de crescimento zero e desemprego alto, numa espécie de
colonialismo interno em benefício do capital financeiro. A privatização
da educação, programa que o governo dos Estados Unidos tentou implantar
com ajuda dos generais do golpe de 64, sendo parcialmente derrotado na
rua pela luta dos estudantes que fizeram a honra e glória da geração 68,
está em alta mais uma vez. Vinte e oito anos depois da Constituição que
estabeleceu o SUS, o Ministro da Saúde fala em planos de saúde privada
para os pobres -- que irão gastar o dinheiro suado com tubarões que
nunca irão entregar aquilo que merecem.
Trinta anos depois da quebra do
Banco Nacional de Habitação do regime militar, levado a falência, entre
outras razões, pelo delírio de construir apartamentos subsidiados para a
classe média alta, o Minha Casa Minha Vida abandona as construções
voltadas para a população mais pobre.
Contra um ambiente de caos cada vez mais
nítido no horizonte, o retorno de Dilma não é um milagre nem a salvação
de toda a lavoura. Não há dúvida, porém, que representa a alternativa
que permite, em primeiro lugar, preservar a democracia e os direitos
fundamentais. Será a derrota do governo pelo medo, esse sistema nem
sempre visível na fase inicial, quando as verdades nem sempre ousam
dizer o próprio nome -- como Golpe de Estado -- e pouco a pouco
liberdades incômodas são afrontadas, a perseguição a lideranças
políticas adversárias se torna um jogo utilitário, as medidas de exceção
se transformam em regra.
Alguém imagina que desde o início os
gregos sabiam tudo o que lhes estava reservado pelo FMI, Banco Central
Europeu, União Europeia? Ou os franceses, vítimas de falsos socialistas
que sustentam François Hollande? Portugueses, espanhóis?
Vivemos um período histórico no qual
direitos que pareciam assegurados a todos, para nunca mais serem
questionados, se encontram sob ameaça constante, em todas as partes do
planeta nas quais governos que expressam interesses de 1% de suas
respectivas populações tentam impor medidas abertamente prejudiciais aos
demais 99%, para empregar a imagem muito apropriada do Premio Nobel
Joseph Stiglitz. Pela estreitíssima fresta pela qual é possível imaginar
um Brasil possível em caso da vitória de Dilma no julgamento que se
inicia hoje, enxerga-se um país leal a democracia, que permite a
expressão legítima da vontade da maioria e a alternância no poder --
pelas urnas, sempre pelas urnas, apenas por elas. É o caminho natural
para a defesa de direitos e preservação de conquistas que se tenta
eliminar com a bancada de Eduardo Cunha, aliado número 1 do golpe, nunca
é demais lembrar.
A experiência universal ensina que não
há última chance para os povos. Sempre haverá oportunidades para lutar e
defender seus direitos, como disse a própria Dilma, na noite de ontem,
em Brasília, no auditório do Sindicato dos Bancários, num ato público
que reuniu lideranças dos principais movimentos sociais. Caso assumam
suas responsabilidades perante o país, num gesto de coragem pelo qual
não serão obrigados a murmurar palavras humilhantes de arrependimento e
pedidos de desculpa, destino inevitável de todos os carrascos das
democracias, os senadores ajudarão os brasileiros a livrar-se de um
pesadelo que, iniciado há três meses, parece durar há 30 anos.
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