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25/08/2016
Amorim detona política externa do Cerra
"Não se pode excluir um país porque você não gosta da política dele"
Conversa Afiada - publicado
24/08/2016
O Conversa Afiada reproduz da Rede Brasil Atual:
Ministro das Relações Exteriores do
governo Luiz Inácio Lula da Silva e da Defesa na gestão Dilma Rousseff,
Celso Amorim assumiu em junho o comando do Conselho de Administração da
Unitaid – agência internacional dedicada a facilitar o acesso de
populações pobres a medicamentos para o combate à aids, tuberculose e
malária.
Em entrevista exclusiva à Agência
Brasil, Amorim, que esteve recentemente no Recife para participar de um
evento em comemoração aos 70 anos da Universidade Federal de Pernambuco
(UFPE), falou sobre o impasse em relação à sucessão na presidência do
Mercosul, os efeitos - no país e no exterior - do julgamento da
presidenta Dilma Rousseff no processo de impeachment e seu possível
afastamento definitivo da Presidência, bem como sobre a política externa
em vigor, não se furtando, inclusive, de comparar o estilo de 'fazer
política externa' dos dois governos a quem serviu como chanceler.
Sobre a presidência do Mercosul,
Amorim, que já foi representante permanente do Brasil junto à
Organização das Nações Unidas (ONU) e à Organização Mundial do Comércio
(OMC), teceu críticas em relação à postura do Brasil no caso e defendeu o
diálogo como a melhor forma de se chegar a um consenso. “Você não pode
ter uma atitude de exclusão de um país porque você não gosta da política
dele”, disse, ao se referir à oposição do Brasil à transferência da
liderança do bloco econômico sul-americano para a Venezuela.
Confira abaixo os principais trechos da entrevista concedida à Agência Brasil:
Como o senhor vê o atual
momento do Brasil em meio a um processo de impeachment da presidenta
Dilma e a mudanças na política externa?
Primeiro, vamos esperar até o final, a
gente nunca pode abandonar todas as esperanças. Mas pensando na hipótese
mais provável, que haja o impeachment, eu acho que isso causa um certo
trauma tanto interno quanto externo. Interno porque é uma mudança muito
grande de política, já se viu isso. Claro que há toda a argumentação em
relação às acusações contra a presidenta Dilma que, a meu ver, não
justificaria um impeachment. Mas, além disso, vejo um grande trauma
porque não é um impeachment em relação a uma pessoa, mas a um projeto
político. Vamos ter um momento longo, esses próximos dois anos pelo
menos, com muita tensão social. E com decisões que podem afetar o futuro
a longo prazo por um governo que a rigor não foi eleito, então isso é
muito preocupante.
O ministro das Relações
Exteriores, José Serra, em seu discurso de posse, anunciou mudanças nos
rumos da política externa brasileira. Como você analisa esse momento?
O caso mais emblemático atualmente é
essa questão da presidência da Venezuela no Mercosul. Não vou defender o
que está se passando na Venezuela, mas eu acho que nessas questões você
tem que agir pela persuasão, pelo diálogo, junto com outros países,
como o Brasil já fez. Quando o Brasil criou o grupo de amigos da
Venezuela não eram amigos do Hugo Chávez (presidente da Venezuela de
1999 a 2013). E ele foi induzido a fazer o que não queria. Não só chamar
um referendo revocatório, mas ter inclusive observadores
internacionais. Isso foi feito através da conversa, da associação com
outros países, Estados Unidos, Chile. E agora não, é uma atitude muito
condenatória que tem um efeito muito grave para o Mercosul porque, na
realidade, você está desrespeitando um artigo básico, que é o fato de
que a presidência do Mercosul passa de um país para o outro por ordem
alfabética. Em nenhum lugar diz que é por consenso. As decisões do
Mercosul são por consenso, mas a passagem da presidência de um país para
o outro não requer decisão. Você não pode fazer um referendo para mudar
a ordem do alfabeto. A próxima era a Venezuela, então teria que
assumir.
Você não pode ter uma atitude de
exclusão de um país porque você não gosta da política dele. Esse é o
aspecto mais forte. A Argentina e o Uruguai brigaram muito por causa das
papeleiras (impasse com fábricas de papel ocorrido em 2006). Mas nunca a
Argentina objetou ao Uruguai de assumir, ou vice-versa. Outro argumento
usado é que a Venezuela não poderia presidir o Mercosul porque não
cumpriu as suas obrigações. Se for assim, nenhum país pode assumir a
presidência porque nenhum país cumpre totalmente suas obrigações. A
Venezuela pode estar mais atrasada, mas vamos discutir, persuadir, fazer
até um cronograma. O resultado do diálogo a gente não sabe qual é, mas
você tem que ter a vontade de dialogar.
E na parte comercial?
Na parte comercial eu teria que
distinguir o que fala o chanceler José Serra, outras pessoas do governo e
o que fala parte da mídia, quando diz 'Ah, o Brasil não pode se isolar
do mundo, tem que fazer outros acordos', como esse da parceria
Transpacífica (acordo de livre comércio entre os 12 países banhados pelo
Oceano Pacífico). Se o Brasil fosse participar desses acordos ele teria
que fazer concessões muito grandes, inclusive em áreas que até o
governo Fernando Henrique – quando José Serra era o ministro da Saúde –
apoiou com muita força, como uma política de combate a aids. Não vou
entrar em questões técnicas, mas esses acordos têm cláusulas que vão
além do acordo de propriedade intelectual da Organização Mundial do
Comércio (OMC). Para colocar em termos simples, fica mais difícil
produzir remédios genéricos para a população. Obriga a pagar patentes
muito caras. Tem outras coisas: dificuldade para compras governamentais,
que é um instrumento necessário de política industrial. Há vários
outros aspectos.
E nenhum dos Brics assinou esses
acordos, não é o Brasil que está isolado. Eu acho que o Brasil não tem
razão para assinar, deve continuar lutando para ter um acordo na OMC, eu
sei que é difícil, e vai fazendo outros acordos com países em
desenvolvimento. Você pode até negociar com a União Europeia, eu não sou
contra, desde que as ofertas sejam compatíveis, desde que não haja um
cerceamento à nossa política de saúde, às nossas políticas industriais.
Você lê muito os empresários dizerem que há uma desindustrialização do
país. Bem, se formos entrar cegamente nesses acordos posso garantir que a
desindustrialização vai se acelerar. Pode ser que alguns empresários se
beneficiem porque eles acabam se tornando representantes de indústrias
estrangeiras aqui, mas o conteúdo de produção local certamente vai
diminuir muito.
O governo interino tem
demonstrado uma tentativa de reaproximação com os Estados Unidos. Como
isso pode mudar as relações do Brasil com esse país?
Primeiro, os Estados Unidos são uma
incógnita porque eles vão ter uma eleição complexa. Mas deixe-me dizer: o
Brasil nunca esteve afastado dos Estados Unidos. O Brasil não se
submeteu a uma agenda que não era nossa, e que era a agenda da Área de
Livre Comércio das Américas, proposta dos EUA recusada por governos
latino-americanos (Alca). Todos aqueles problemas que eu mencionei em
relação aos mega acordos internacionais já existiam na Alca. Não
poderíamos ter compras governamentais, programas sociais seriam
limitados pela extensão da questão de patentes. Não vou entrar em
detalhes, mas é uma coisa muito parecida. Mas o Brasil e os Estados
Unidos trabalharam juntos durante muito tempo na OMC. Nós atuamos juntos
tentando fazer com que a União Europeia abrisse mais sua agricultura. O
presidente Bush esteve aqui duas vezes, colocou na cabeça um capacete
da Petrobras. Fizemos acordo de etanol para valer, para cooperação com
terceiros países. Até em termos políticos tivemos uma relação muito boa.
E um comentário que eu queria ter feito
antes: a questão do Mercosul, Unasul, não é só comercial, é uma questão
política. O Brasil está inserido nessa região, e temos esse fato que é
quase único no mundo, senão único, de um país que tem dez fronteiras e
não temos nenhum conflito, nenhuma ameaça de conflito. Mas não é de
graça, tem que renovar isso todo dia numa política de compreensão. E eu
temo que uma política que deixe de lado – 'ah não, solidariedade é
bobagem, não temos porque ajudar a Bolívia, isso é bolivarianismo, não
sei o quê' – eu temo que nos coloque numa situação de atrito com esses
países e tenha até um efeito econômico negativo. Não só com relação à
integração sulamericana, mas nossa aproximação com a África, com o mundo
árabe, etc.
Como o processo de impeachment pode afetar a imagem do Brasil no cenário internacional, a médio e longo prazo?
O Brasil é um país muito grande, uma
economia muito importante. É muito difícil qualquer país dizer que não
quer ter relações com o Brasil por causa da maneira como houve a mudança
de governo. É claro que vai haver dificuldades, inibições. O próprio
John Kerry, atual secretário de estado dos EUA, esteve aqui, mas houve
40 parlamentares do Partido Democrata que protestaram. Esse relativo
desapreço pelas relações Sul-Sul pode afetar diretamente nossos
interesses. Porque entre as grandes economias a que mais cresce é a
indiana. A chinesa dizem que cresce pouco mas é 6% ao ano. Se considerar
a África como um país – claro que é artificial isso, mas é um cálculo
para ter uma ideia – ela seria o quarto parceiro comercial. Viria acima
da Alemanha. Então não é um mercado que você possa dizer que não há
interesse. Sem falar que tem muitas empresas brasileiras lá.
E sem falar também em outros aspectos
que as pessoas podem achar que sejam superficiais, que tudo que não era
comércio era blá-blá-blá. Isso é uma falta de percepção. O Brasil tem
hoje uma grande penetração econômica em Moçambique, já tínhamos feito um
centro cultural que sobreviveu à guerra civil. Fizemos uma fábrica de
antirretroviriais. Tudo isso gera uma boa vontade no governo, no povo,
que se você considerar tudo isso secundário, blá-blá-blá, você acabará
perdendo essas chances. Pessoas falam muito para estudar o
custo-benefício, mas você não tem como saber imediatamente. O exemplo de
Moçambique: você faz uma fábrica de antirretrovirais num país
paupérrimo. Como você vai fazer uma relação de custo-benefício? Você vai
fazer isso porque é bom! Agora ao mesmo tempo aquilo predispõe a
população favoravelmente para você.
Houve uma discordância do senhor com a
presidenta Dilma Rousseff na condução da política externa? Quando ela
deu posse ao então ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, o
senhor deu entrevista falando que era preciso recuperar a moral dos
embaixadores, o prestígio da pasta. O atual ministro também fala em
penúria financeira...
Eu tenho grande respeito pela
presidenta Dilma. Acho que nunca tive discordância com ela em relação a
posições. Pode ter havido um ou dois casos menores, que acontece. Mas eu
costumava dizer o seguinte: a política externa do presidente Lula ia
ser ativa e altiva. Em matéria de altivez, a política da presidenta
Dilma seguiu o mesmo padrão. Inclusive quando houve o caso de espionagem
dela própria, na nossa área de energia. Ela cancelou a visita aos
Estados Unidos. Propôs uma resolução importante na ONU, junto com os
alemães, que até hoje tem repercussão. Outra coisa importante que ela
não criou sozinha, mas consolidou, foi a criação do banco dos Brics.
Agora, por razões que eu nem tenho condições de julgar, ela deu um pouco
menos de ênfase aos temas exteriores do que o governo Lula. Uma questão
de temperamento, de vocação, talvez ela já estivesse preocupada com a
crise econômica que se anunciava. E isso acabou se refletindo em
problemas estruturais no Ministério de Relações Exteriores, o que eu
pessoalmente lamento. Mas ela não mudou a orientação, não fechou nenhuma
embaixada nem falou em fechar.
Existe uma necessidade de recomposição do orçamento?
Isso eu reconheço que existe. As nossas
embaixadas na África mesmo, nenhuma delas foi fechada, mas poderiam ter
tido lotação maior. Nós, no governo do presidente Lula, tínhamos feito
um projeto para aumento dos quadros diplomáticos de 400 pessoas, depois
para aumentar mais 400. O Congresso aprovou, mas nunca foi implementado.
Na África você poderia ter continuado com essa política, porque, em
alguns lugares, ter uma pessoa só é muito pouco. Não é que não faça
nada, faz. Mas faria melhor se tivesse um ou dois auxiliares.
O senhor assumiu no fim de
junho a presidência do Conselho de Administração da Unitaid, agência
especializada na gestão de medicamentos para combate à Aids, à
tuberculose e a malária em países pobres. Já conseguiu perceber quais
são os maiores desafios?
A Unitaid tem feito coisas muito boas.
Ela ajudou a financiar um projeto para formulação pediátrica para aids. É
muito interessante porque não é que ela vai agir na pesquisa de ponta
para descobrir uma nova molécula, porque isso está fora da capacidade
orçamentária, mas ela pode agir no sentido de ter um desenvolvimento de
um setor que não está atraindo os laboratórios privados. A organização
está estudando agora uma participação financeira para uma vacina para a
malária, que seria a primeira. Talvez o grande desafio seja manter as
contribuições e se possível aumentar. Com as condições atuais do mundo,
há uma competição por recursos. Pretendo fazer visitas aos principais
contribuintes. Países que já contribuíram mais e estão contribuindo
pouco. Embora os recursos tenham sido suficientes, você tem que ter uma
previsibilidade a longo prazo.
Ampliar o número de países doadores é um desafio? E tem também a zika, os recursos estão muito direcionados para o vírus.
Certamente seria interessante atrair a
China, a Rússia, a Alemanha, os países desenvolvidos do Ocidente. Mas
também não se pode querer fazer tudo de uma vez, porque a Unitaid
funciona de maneira muito harmoniosa. E com relação à zika acho que é
uma oportunidade sim. Tem muita gente interessada na zika. E há também
na Unitaid preocupações que se ligam a algumas das consequências da
zika, que é a saúde materna e dos recém-nascidos.
Para terminar, como esse momento do país pode influenciar na Unitaid?
Eu pretendo manter com o governo uma
relação profissional. Estou dirigindo um organismo internacional que o
Brasil ajudou a fundar e que se alinha com políticas de saúde, como o
combate à aids. Então não creio que vá haver problemas. Também vai
depender: se esses cortes orçamentários que estão anunciados passarem,
todos os setores vão ficar preocupados, saúde, inclusive. Seria ruim o
Brasil perder essa participação, porque é uma voz forte. Provavelmente, a
voz mais forte de um país em desenvolvimento. Mas não creio que vá
perder.
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