01/09/2013
Saúde
“A medicina perdeu a aura de profissão exclusivamente dedicada a minorar o sofrimento”
Da Carta Capital - 01/09/213
Para o ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão,
formação médica excessivamente voltada à especialização leva ao
desinteresse dos jovens brasileiros pelo Mais Médicos
por Miguel Martins
—
publicado
01/09/2013 08:12,
última modificação
01/09/2013 09:19
Agência Brasil
O ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão
Ex-ministro da Saúde do governo Lula e atual
diretor-executivo do Isags, braço de saúde da União de Nações
Sul-Americanas (Unasul), José Gomes Temporão afirma que o desinteresse
dos profissionais brasileiros em participar do programa Mais Médicos
deve-se a uma formação médica excessivamente centrada na especialização,
afastando os jovens de uma ação voltada ao atendimento familiar e
preventivo. Sanitarista de formação, Temporão não antevê problemas de
adaptação aos 400 médicos cubanos que desembarcaram no Brasil no último
fim de semana. Quanto às possíveis barreiras na legislação trabalhista
brasileira à vinda dos profissionais, o ex-ministro argumenta que não há
“vínculo laboral”, mas apenas um acordo de cooperação trilateral entre o
Brasil, a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) e Cuba. Confira,
abaixo, a íntegra da entrevista a CartaCapital.
CartaCapital: Por que houve tão pouco interesse dos médicos brasileiros na convocação do Mais Médicos? O senhor considera que haja um desinteresse por medicina familiar e preventiva entre os profissionais formados no Brasil?
José Gomes Temporão: São múltiplos os aspectos envolvidos. Em primeiro lugar o clima criado, no momento em que as entidades médicas desencadearam uma guerra santa contra o projeto do governo. Mas esse não me parece o fator central. Há muito a medicina perdeu aquela aura de profissão nobre e única e exclusivamente dedicada a minorar o sofrimento humano. Transformou-se em um florescente negócio que envolve gigantescos recursos financeiros em todo o mundo. Embora importante, o médico é uma peça nessa engrenagem. Existe toda uma cultura do cuidado voltada para a sofisticação tecnológica, nem sempre adequada ou necessária, o que acaba colocando barreiras ao que se considera como exercício profissional seguro ou em condições adequadas. Ao lado do fato de que médicos, arquitetos, advogados etc. optam por trabalhar e viver onde possam ter segurança, conforto e perspectivas de longo prazo na carreira. Por fim a formação médica fortemente centrada na especialização precoce e na fragmentação da atenção entre subespecialidades afasta os jovens médicos de uma ação mais holística e centrada na atenção primária e na prevenção. De todo modo, deve ficar claro que o Mais Médicos é uma proposta parcial, focal e que, por si só, não tem potencial para mudanças substantivas no sistema de saúde.
CC: Como o senhor avalia a educação e a prática médicas em Cuba? Acha que os médicos cubanos conseguirão se adaptar e fazer um bom trabalho?
JGT: Cuba tem uma saúde pública de bom padrão com indicadores de fazer inveja a muito países desenvolvidos. Eles possuem décadas de experiência em trabalhos deste tipo em países da África e América Latina. Não antevejo nenhum problema de adaptação à realidade dos municípios onde vão atuar.
CC: Muitas críticas tem sido feitas à forma de contratação dos cubanos. As bolsas no valor de 10 mil reais serão repassadas ao governo cubano e os médicos devem receber entre 2,5 mil a 4 mil reais. Em entrevista recente à CartaCapital, o senhor levantou o problema do tipo de vínculo que será estabelecido com os profissionais, se será apenas uma bolsa ou um plano de carreira na saúde pública, com perspectiva de longo prazo. Em relação a vinda dos cubanos, como o senhor vê essa questão trabalhista?
JGT: Na realidade, a vinda dos médicos cubanos não se caracteriza pelo estabelecimento de um vínculo laboral entre esses profissionais com o governo brasileiro. É um acordo de cooperação trilateral entre o Brasil, as Nações Unidas (OPAS) e Cuba, de caráter claramente provisório e com o claro objetivo de, em caráter emergencial, levar serviços médicos essenciais a quem hoje não dispõe deles. Claro que podem surgir outras implicações neste tipo de relação que inclusive estão sendo analisadas pelos órgãos de controle e da Justiça do Trabalho.
CC: No lugar do Revalida, os médicos estrangeiros serão avaliados por professores de instituições públicas e aqueles considerados aptos receberão um registro profissional provisório. Um dos argumentos a favor da mudança é o de que o Revalida tem índices de reprovação altíssimos entre os médicos estrangeiros. Como o senhor vê essa nova forma de avaliação?
JGT: É perceptível um evidente preconceito em relação aos médicos estrangeiros e sua capacidade técnico-científica. Claro que a proposta correta seria a de submeter todos esses profissionais ao Revalida. O argumento de que o Revalida reprova muito e por isso não pode ser utilizado me parece falacioso. Seu conteúdo deveria expressar o grau de conhecimento necessário para aquele profissional exercer determinada função no sistema de saúde. A opção do governo pela concessão de um registro provisório com vigência apenas durante o período de 3 anos e atuação exclusiva na atenção primária, tem a ver com o fato de que não se poderia restringir legalmente, do ponto de vista do exercício da profissão, a atuação no setor público ou privado e em qualquer local do território nacional, aos aprovados no Revalida. Se o revalida fosse exigido para todos os estrangeiros, os que fossem aprovados poderiam exercer a medicina em qualquer local e especialidade, tanto no setor público como no privado. Isso vai contra a estratégia do governo de restringir os locais de exercício apenas aqueles municípios definidos, apenas na atenção básica e apenas no setor público.
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CartaCapital: Por que houve tão pouco interesse dos médicos brasileiros na convocação do Mais Médicos? O senhor considera que haja um desinteresse por medicina familiar e preventiva entre os profissionais formados no Brasil?
José Gomes Temporão: São múltiplos os aspectos envolvidos. Em primeiro lugar o clima criado, no momento em que as entidades médicas desencadearam uma guerra santa contra o projeto do governo. Mas esse não me parece o fator central. Há muito a medicina perdeu aquela aura de profissão nobre e única e exclusivamente dedicada a minorar o sofrimento humano. Transformou-se em um florescente negócio que envolve gigantescos recursos financeiros em todo o mundo. Embora importante, o médico é uma peça nessa engrenagem. Existe toda uma cultura do cuidado voltada para a sofisticação tecnológica, nem sempre adequada ou necessária, o que acaba colocando barreiras ao que se considera como exercício profissional seguro ou em condições adequadas. Ao lado do fato de que médicos, arquitetos, advogados etc. optam por trabalhar e viver onde possam ter segurança, conforto e perspectivas de longo prazo na carreira. Por fim a formação médica fortemente centrada na especialização precoce e na fragmentação da atenção entre subespecialidades afasta os jovens médicos de uma ação mais holística e centrada na atenção primária e na prevenção. De todo modo, deve ficar claro que o Mais Médicos é uma proposta parcial, focal e que, por si só, não tem potencial para mudanças substantivas no sistema de saúde.
CC: Como o senhor avalia a educação e a prática médicas em Cuba? Acha que os médicos cubanos conseguirão se adaptar e fazer um bom trabalho?
JGT: Cuba tem uma saúde pública de bom padrão com indicadores de fazer inveja a muito países desenvolvidos. Eles possuem décadas de experiência em trabalhos deste tipo em países da África e América Latina. Não antevejo nenhum problema de adaptação à realidade dos municípios onde vão atuar.
CC: Muitas críticas tem sido feitas à forma de contratação dos cubanos. As bolsas no valor de 10 mil reais serão repassadas ao governo cubano e os médicos devem receber entre 2,5 mil a 4 mil reais. Em entrevista recente à CartaCapital, o senhor levantou o problema do tipo de vínculo que será estabelecido com os profissionais, se será apenas uma bolsa ou um plano de carreira na saúde pública, com perspectiva de longo prazo. Em relação a vinda dos cubanos, como o senhor vê essa questão trabalhista?
JGT: Na realidade, a vinda dos médicos cubanos não se caracteriza pelo estabelecimento de um vínculo laboral entre esses profissionais com o governo brasileiro. É um acordo de cooperação trilateral entre o Brasil, as Nações Unidas (OPAS) e Cuba, de caráter claramente provisório e com o claro objetivo de, em caráter emergencial, levar serviços médicos essenciais a quem hoje não dispõe deles. Claro que podem surgir outras implicações neste tipo de relação que inclusive estão sendo analisadas pelos órgãos de controle e da Justiça do Trabalho.
CC: No lugar do Revalida, os médicos estrangeiros serão avaliados por professores de instituições públicas e aqueles considerados aptos receberão um registro profissional provisório. Um dos argumentos a favor da mudança é o de que o Revalida tem índices de reprovação altíssimos entre os médicos estrangeiros. Como o senhor vê essa nova forma de avaliação?
JGT: É perceptível um evidente preconceito em relação aos médicos estrangeiros e sua capacidade técnico-científica. Claro que a proposta correta seria a de submeter todos esses profissionais ao Revalida. O argumento de que o Revalida reprova muito e por isso não pode ser utilizado me parece falacioso. Seu conteúdo deveria expressar o grau de conhecimento necessário para aquele profissional exercer determinada função no sistema de saúde. A opção do governo pela concessão de um registro provisório com vigência apenas durante o período de 3 anos e atuação exclusiva na atenção primária, tem a ver com o fato de que não se poderia restringir legalmente, do ponto de vista do exercício da profissão, a atuação no setor público ou privado e em qualquer local do território nacional, aos aprovados no Revalida. Se o revalida fosse exigido para todos os estrangeiros, os que fossem aprovados poderiam exercer a medicina em qualquer local e especialidade, tanto no setor público como no privado. Isso vai contra a estratégia do governo de restringir os locais de exercício apenas aqueles municípios definidos, apenas na atenção básica e apenas no setor público.
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