12/09/2016
Xadrez da teoria do choque e do capitalismo de desastre
Jornal GGN - seg, 12/09/2016 - 18:30 Atualizado em 12/09/2016 - 19:32
Há um conjunto de peças soltas no golpe que, quando
devidamente organizadas, permitem entender de modo muito mais claro um
dos aspectos mais relevantes: a influência externa.
São elas:
- 1. A campanha sistemática da mídia de destruição da autoestima nacional.
- 2. Recém instalado o golpe, a corrida do ouro entre Eduardo Cunha e José Serra, para ver quem se antecipava na aprovação da nova legislação do petróleo.
- 3. A ida repentina do senador Aloysio Nunes aos Estados Unidos, para conversar com membros do Senado.
- 4. Antes dele, a ida do Procurador Geral da República aos Estados Unidos, para reuniões com o Departamento de Justiça e outros setores sensíveis.
- 5. A bandeira mágica que acompanha o golpe, de colocar a salvação do Brasil no trinômia reforma da Previdência-livre fluxo de capital-desregulação/privatização.
Para juntar as peças acima, vale a pena um mergulho no livro “Teoria do Choque” da norte-americana Naomi Klein.
Peça 1 – o início da “teoria do choque”
A
base do livro é a descrição de estudos psicológicos nos Estados Unidos,
que teriam contribuído igualmente para o aprimoramento dos métodos de
tortura da CIA e das intervenções político-econômicos em países
conflagrados. Tratam-se dos estudos de 1963 de Ewen Cameron e Donald
Hebb, sistematizando os princípios do que veio a ser vulgarmente
conhecido como lavagem cerebral através do uso de eletrochoques. A
conclusão principal era a de que “a privação de estímulos (através da
tortura) induz à regressão, despojando a mente do indivíduo do contato
com o mundo exterior e forçando à regressão”.
Quando o prisioneiro mergulha em um estado de
“choque psicológico”, ou “vivacidade interrompida”, é sinal de que está
mais aberto a sugestões, mais disposto a ceder. Em situações mais
brandas, mas nem por isso menos drásticas, mantem-se o réu detido, sem
contato com o mundo exterior, com família, sem acesso a notícias, até
que entre no estado da “vivacidade interrompida”. Se o trabalho for bem
feito, delata até o casamento da princesa Leopoldina em Diamantina, onde
nasceu JK (apud “Samba do crioulo doido”).
Para haver cura, seria preciso eliminar tudo o que
existia antes. “Cameron estava seguro de que se varresse para bem longe
os hábitos, modelos e lembranças dos seus pacientes, chegaria àquele
espaço vazio primitivo”, diz Naomi. Em geral, os resultados alcançados
foram os de deixar os pacientes com suas memórias fraturadas e sua
confiança traída, constata ela. Mas abrindo o bico, que é o que
interessava.
Cameron transpôs suas teses para o campo das
ciências sociais, através de um livro onde pontificava sobre como
preparar a reconstrução da Alemanha no pós-guerra. Propôs-se a
desenvolver uma nova ciência social e comportamental, na qual os
cientistas do comportamento passariam a agir como planejadores sociais.
Nessa nova utopia não haveria lugar para os doentes e os fracos, que
deveriam ser removidos para não influenciar as novas gerações.
Peça 2 – o capitalismo de desastre
Segundo
Naomi, essa mesma tese da destruição-reconstrução foi desenvolvida pelo
chamado capitalismo de desastre, a partir dos estudos e da pregação de
Milton Friedman, da Escola de Chicago, inspirada nas teses de Cameron.
Em um de seus ensaios fundamentais, Friedman
desenvolveu a estratégia de como se prevalecer de situações de crise –
“crise real ou pressentida” enfatizou. Quando a crise acontece, dizia
ele, as ações que são tomadas dependem das ideias que estão à
disposição. “Esta, eu acredito, é a nossa função primordial: desenvolver
ideias alternativas às políticas existentes, mantê-las em evidência e
acessíveis até que o politicamente impossível se torne politicamente
viável”.
Tão logo uma crise se instale, defendia Friedman, é
essencial agir rapidamente, “impondo mudanças súbitas e irreversíveis,
antes que a sociedade abalada pela crise possa voltar à tirania do
status quo”. Nas suas contas, uma administração teria de seis a nove
meses para realizar as principais mudanças. “Caso não agarre a
oportunidade de agir de modo decisivo durante esse período, não terá
outra chance igual”.
A fórmula salvadora consistia em medidas
irreversíveis que atendam ao trinômio liberdade total para o
capital-privatização/desregulação-cortes nos serviços e benefícios
sociais. Alguma semelhança com o caso brasileiro?
Há inúmeros episódios em que se aplicou a teoria do
choque, desde o golpe contra Allende, no Chile, ao enorme fracasso da
ocupação do Iraque e ao desmonte total do sistema de educação pública de
Nova Orleans, após o terremoto Katrina.
Foi o que Naomi testemunhou na guerra do Iraque.
“Os arquitetos da invasão norte-americana e britânica imaginaram que o
seu uso da força seria tão chocante, tão esmagador, que os iraquianos
mergulhariam em um estado de vivacidade interrompida, muito parecida com
aquele descrita no manual Kubark (da CIA)”.
O certo é que parte dos grandes empresários
norte-americanos, evangelizados por Friedman, se imbuíram do chamado
“destino manifesto”, de levar o capitalismo em estado puro para os povos
primitivos. Personagens contemporâneos, como os irmãos Kock repetem os
W.R.Grace, católicos de origem irlandesa que, nos anos 60, bancavam o
padre Peyton e sua cruzada pelo “rearmamento moral”.
Desde Adlai Stevenson, a CIA tornou-se a parceria
fundamental nessa cruzada capitalista, em que se misturam interesses
empresariais, a pregação evangélica, a síndrome do “destino manifesto” e
a geopolítica do Departamento de Estado. A última tentativa
(fracassada) foi quando Otto Reich, do Departamento de Estado, articulou
com os grupos de mídia venezuelanos a deposição do presidente Hugo
Chávez.
Peça 3 – a “vivacidade interrompida” no golpe brasileiro
Em
algum lugar do passado recente, o Brasil era uma nação prestes a entrar
para o primeiro time. Indústria naval, cadeia produtiva do pré-sal,
grandes empreiteiras, montagem de uma forte indústria nacional de
medicamentos, multinacionais brasileiras começando a conquistar o mundo,
a diplomacia brasileira se impondo nos principais fóruns globais.
Em pouco tempo o país entrou na fase da “vivacidade
interrompida”, a sensação da crise terminal, da falta de saídas, o
pessimismo repetido 24 horas por dia, o fim do mundo ao alcance da
próxima manchete. Instaurou-se a tal crise pressentida.
O que aconteceu?
A partir da AP 470, a imprensa explorou duas
estratégias paralelas. Uma, a da luta contra a corrupção, personificada
no PT e em Lula. Outra, a luta de classes, levantando diuturnamente as
ameaças chavistas, estigmatizando as políticas sociais, enfatizando a
falta de cultura e de verniz dos adversários. É por aí que tem início a
cooptação das classes médias, da elite das corporações públicas e do
próprio Ministério Público Federal, o reino dos PhDs contra o primarismo
dos chavistas.
O brilhante desempenho de Lula e Dilma de 2008 a
2012 anulou a estratégia. Mas a imprensa não interrompeu sua campanha
massacrante, sistemática, de desconstrução do que estava sendo feito.
Valeram-se de diversos subterfúgios. Se se levantavam grandes obras, com
90% concluídas, enfatizavam os 10% que faltavam. Em um programa social
com 15 milhões de famílias assistidas, a manchete era a pequena
corrupção identificada em um ponto qualquer do país. Na Copa do Mundo,
enquanto os estádios e aeroportos eram construídos, destacava-se o fato
de não estarem prontos. Entregues, o destaque era para a falta de
sabonete nos banheiros.
Com os sinais de bonança revertendo, as
manifestações de junho de 2013 foram o primeiro alerta de que que o
pêndulo da opinião pública começava a inverter.
Instalada a crise, a “teoria do choque” pode
colocar a cabeça de fora. Parlamentares como Aécio Neves, no Senado, e
Eduardo Cunha, na Câmara, trataram de bloquear toda a atividade
parlamentar, negando ao governo Dilma as ferramentas mínimas para
consertar os erros. Aécio, José Serra e Fernando Henrique Cardoso
tornaram-se os porta-vozes do caos estimulando o movimento golpista nas
ruas e nos jornais, enquanto a parceria PGR-Lava Jato-mídia tratava de
incendiar a classe média com as denúncias de corrupção focadas
exclusivamente no PT e em Lula.
Nesse período, para preparar o bote final o
Procurador Geral da República (PGR) Rodrigo Janot foi ao Departamento de
Estado pedir a bênção e voltou com malas digitais repletas de
informações sobre as contas das empreiteiras no exterior e sobre a
corrupção na Eletronuclear. Ali, na cooperação internacional, os Estados
Unidos deram a contribuição mais ostensiva para o golpe. Outras
contribuições demandarão algum tempo para virem à tona.
O discurso anticorrupção foi o mote que juntou
todas as pontas, criando o sentimento da classe e fornecendo o álibi
para quem pretendesse pular no barco da conspiração.
Peça 4 - o fator Dilma
Sob esse céu coalhado de bombas, há o fator Dilma Rousseff, é verdade.
Poucas vezes na história teve-se governo mais desastrado e indefeso.
Montou a mais ousada política industrial desde o 2o
PND (Plano Nacional de Desenvolvimento) em torno do pré-sal e da
Petrobras. Estaleiros, renascimento da indústria de máquinas e
equipamentos, atração de laboratórios de grandes multinacionais ao país,
montagem pela Petrobras de programas de compras públicas que dotariam o
país de competência interna imbatível para tecnologia de extração de
petróleo em águas profundas, internacionalização das empreiteiras. Toda
essa responsabilidade nas costas da Petrobras. E, de repente, a
Petrobras passa a ser sufocada pelos sub-reajustes de combustíveis, como
parte da tática de empurrar a inflação com a barriga.
Dilma se fechou para todos os segmentos, dos
movimentos sociais aos empresários, e ainda assistiu inerte a Lava Jato
completar a destruição de parte relevante do PIB sem esboçar um gesto de
resistência.
O ciclo se fecha com sua teimosia em se candidatar à
reeleição e a falta de vontade de Lula de enfrentar a bucha que surgia
no horizonte.
Dilma não entendeu o terceiro tempo das eleições,
que se iniciou no dia seguinte à abertura das urnas, trancou-se no
Palácio, fez dieta e reapareceu em público no dia da posse, com um
ministério tirado do colete, sem nenhuma espécie de articulação política
e com um pacote econômico desastroso.
Consumou-se o desastre com o plano Joaquim Levy,
uma tragédia óbvia e cantada, de que ajuste fiscal com recessão seria um
desastre econômico e uma sinuca política. Aliás,
mote repetido várias vezes por Dilma em sua apresentação no Senado –
mostrando que sempre descobre o caminho certo com alguns anos de atraso.
Dilma foi apenas o desastre que facilitou o golpe,
mas que jamais poderia servir de álibi para a implantação do estado de
exceção. A economia teria condições de se recuperar, não fosse o cerco
do Congresso e da mídia. Estava-se longe do estado de caos retratado na
cobertura jornalística, especialmente na pregação massacrante da Globo.
Mas, o cavalo de Troia do governo – a PGR – já tinha deflagrado a
ofensiva final.
Peça 5 – a corrida contra o relógio
Agora se entra naquele período crítico previsto por
Friedman, de seis a nove meses sob a égide do “vazio primitivo” para
enfiar goela abaixo do país as reformas previstas. Daí esse braço de
guerra, com jornais abrindo manchetes esbaforidas, tipo se a reforma da
Previdência não acontecer nos próximos dias, o futuro estará
comprometido, e outras baboseiras destinadas à ralé da opinião pública.
Ou a pressa de Serra e associados de correr com a lei do petróleo e a
privatização acelerada na Petrobras, mesmo com a economia na bacia das
almas.
A blitzkrieg esbarra, no entanto, nos seguintes fatores:
O Fora Temer
É
o fato novo, que vem em um crescendo, entrando por todos os poros do
mercado de opinião, inclusive nas brechas abertas inadvertidamente pela
mídia, é o Fora Temer. Há o risco concreto de que o tema ganhe os
leitores de jornais. Daí a montagem do sistema de repressão e da
tentativa de envolver as Forças Armadas, através dos factoides dos
supostos terroristas islâmicos, como têm demonstrado as extraordinárias
reportagens de Marcelo Auler (https://is.gd/kX67p6).
Há alguma probabilidade de que pegue o discurso das “diretas-já”.
A ilegitimidade das reformas
Nenhum investidor minimamente informado apostará em
reformas que dependem de um golpe para serem implementadas. Lula e
Dilma avançaram em algumas reformas relevantes, pelo fato de possuírem
credibilidade junto aos movimentos sociais e às esquerdas. Temer não tem
nem credibilidade institucional nem pessoal. O que acontecerá a partir
de 2018?
A construção de Temer
Daí, a uma tentativa bisonha de construir uma
imagem pública minimamente defensável para Temer. Repare na foto ao
lado. É a cara do governo, Eliseu Padilha, cercado pelos holofotes da
mídia. Uma breve pesquisa no Google mostrará uma extensa capivara do
Ministro-Chefe da Casa Civil. Como tornar o governo legítimo? É o Eliseu
de Canoas, do DNIT, dizendo-se defensor da Lava Jato e das reformas.
A
tentativa de isolar Temer, como se fosse uma jovem virginal envolvida
por malandros, não cola. Só o eminente jurista Celso Antônio Bandeira de
Mello tenta acreditar nisso. A vida política de Temer está
estreitamente ligada às de Eliseu Padilha, Eduardo Cunha, Moreira
Franco, José Serra, Geddel Vieira Lima.
Mesmo abstraindo a biografia, Temer não conseguirá
compor o figurino do estadista, ou meramente do presidente que paire
acima das quizílias do dia-a-dia. É miúdo, vingativo, tem um linguajar
antiquado, baixíssimo nível de informação, nenhuma empatia com o
público. O jornal O Globo abriu uma enorme oportunidade para mostrar o lado
“humano” de Temer e ele jogou fora dando um golpe no rei Arthur e
colocando em seu lugar Carlos Magno, que, por sua vez, abriu mão dos
Doze Pares de França para comandar os Cavaleiros da Távola Redonda,
provavelmente em uma escaramuça lá em Diamantina, onde nasceu JK.
A alternativa encontrada foi focar em uma primeira
dama jovem, bonita, discreta e... muda. Foi ridícula a solução
encontrada, de tirar conclusões políticas do “look” branco que ela
utilizou em uma solenidade qualquer. Ridícula por expor a necessidade
dos jornais de arrostar o impossível e o ridículo para atender o governo
Temer e fazer jus à bolsa mídia prometida por Eliseu Padilha.
O fator Lava Jato
Na Lava Jato há dois personagens acusados de jogo
político, de perseguição ao PT e de proteção ao PSDB: o PGR Rodrigo
Janot e o juiz Sérgio Moro. Janot não conseguirá desvencilhar-se do
estigma simplesmente por não ter nem vontade nem condição política de
indiciar Aécio Neves.
No entanto, há alguns sinais no horizonte de que
Moro pretenda passar no teste de imparcialidade investindo na delação de
Eduardo Cunha.
Consumada a cassação de Eduardo Cunha, a maior
probabilidade é de que em poucos dias ele seja conduzido preso à
Curitiba e submetido a uma delação conduzida por Moro. Isso ocorrendo,
sairia das asas de Janot e se abriria alguma possibilidade de rompimento
da blindagem sobre Aécio Neves e de ameaças concretas contra o governo
Temer.
Há uma probabilidade - pequena, por enquanto - de crescimento do "diretas já" e de abreviação do governo Temer.
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